Diante de manifestações na imprensa e redes sociais em torno da programação do Congresso Sul Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, a Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) vem a público reiterar princípios que orientam nossas práticas institucionais, em especial da atual gestão, e que já foram destacados em nossa carta de apresentação.
Os questionamentos surgidos emergem de entendimentos controversos em torno dos conceitos de política, ideologia e partido político (muitas vezes usados como sinônimos) e sua relação com a ciência e a medicina de família e comunidade.
Globalmente, a medicina de família e comunidade (MFC) tem seu compromisso com a pessoa e não com um determinado corpo de conhecimento, grupo de doenças ou técnica especial (McWhinney, 2016; 1981; Heath, 2016). A SBMFC é uma entidade científica e profissional autônoma, representativa de seus associados, médicos e médicas que atuam na Atenção Primária à Saúde no Brasil, pública ou privada. Neste sentido, a SBMFC repudia qualquer vinculação partidária às suas ações e posicionamentos, por entender que entidades da nossa natureza têm propósitos e finalidades distintas dos partidos políticos em sociedades republicanas, como o Brasil.
A relação entre posicionamentos e teorias políticas e sociais e saberes e práticas científicos é um tema controverso na comunidade científica, que mobiliza posicionamentos divergentes. O uso abrangente do conceito de “ideologia” é um exemplo dessas controvérsias (Gerring, 1997).
O termo “ideologia”, quando usado com caráter pejorativo, não aborda os princípios de um sistema de pensamento político em si, mas de uma dimensão moral desonesta e manipulatória do seu emprego. Neste sentido, “Ideologia” significa estratégias discursivas para a manipulação – intrinsecamente, desonesta e perversa – das escolhas individuais das pessoas em prol de um determinado sistema de pensamento político e econômico que atende prioritariamente interesses de um grupo social. Esse uso é reprovável na prática científica.
Por outro lado, “ideologia” pode significar qualquer sistema intelectual que reúna ideias e conceitos sobre o ser humano, a sociedade e a natureza ou o estudo desses sistemas. Nesse caso, não haveria qualquer valor pejorativo no uso do termo e pode-se dizer que não seria possível fazer ciência sem ideologia e, inclusive, a própria ciência poderia ser considerada uma ideologia. Divergências de posicionamento semelhantes ocorrem quando a designação “político” é tomada, por vezes, como sinônimo de vinculação a partidos políticos ou, em outras ocasiões, como referente aos modos como os indivíduos e grupos sociais se relacionam com os diversos dispositivos e práticas de poder em uma sociedade.
Diante de controvérsias em sua comunidade epistêmica, as instituições científicas devem zelar pela construção de espaços para o debate e não pela rejeição acrítica das dúvidas e polêmicas. As diferentes posições devem ter voz e espaço nos eventos e atividades de uma comunidade científica que preza pela pluralidade, pelo debate de ideias e por uma ciência que contribua para a justiça social, para a promoção da saúde e para a garantia dos direitos humanos.
Por muitos anos, a medicina tem sido dominada pela abordagem estritamente positivista dos problemas de saúde, que tem se mostrado limitada. Vários processos de adoecimento não podem ser totalmente compreendidos a menos que sejam vistos a partir da perspectiva da determinação social da doença, e por isso vários desses temas permeiam a discussão científica específica do escopo de prática da APS e da MFC. O debate que instrumentaliza e permite a construção de estratégias que promovam a redução das iniquidades de saúde é o espelho de uma sociedade científica comprometida com a saúde como direito social, em um país de recente tradição democrática.
Os congressos nacionais, estaduais e regionais promovidos pela SBMFC e suas afiliadas estaduais utilizam, há diversas edições, metodologias colaborativas de organização em que a programação do congresso é construída com a participação ativa de nossos associados. Essas programações contemplam sempre amplos espaços para atualizações e debates sobre a abordagem de aspectos biomédicos dos problemas de saúde mais frequentemente abordados pelos médicos de família, bem como dos aspectos psicossociais que de forma integrada constituem a clínica centrada na pessoa, característica axial de nossa disciplina. As dimensões biomédica e psicossocial da medicina têm configurações inacabadas, em constante construção, que acompanham as ininterruptas transformações sociais dos diferentes tempos e contextos históricos.
O debate científico em torno dos aspectos psicossociais da MFC é tributário de outras áreas acadêmicas de conhecimento como a filosofia, a psicologia, as ciências sociais (sociologia, antropologia, ciência política), as ciências da religião, a saúde coletiva, além do diálogo democrático com os saberes populares e dos próprios pacientes. O fato de um médico de família ser generalista não significa que todos os médicos e médicas de família e comunidade possuam conhecimentos e habilidades idênticos. Diferentes MFC possuem diversas ênfases na sua atuação profissional. O que todos compartilham é o mesmo compromisso com os pacientes e com a aplicação do método clínico centrado na pessoa.
Nossos congressos refletem esse processo de construção coletiva com nossos associados e a complexidade dos temas envolvidos. O VI Congresso Sul Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade é mais um exemplo exitoso deste trabalho, sendo o maior congresso Sul Brasileiro da história da MFC, com 1370 participantes. Endossamos, portanto, os esclarecimentos já prestados pela Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade sobre a realização deste evento em particular.
O evento além de espelhar os princípios acima referidos, trouxe para o debate o cuidado às populações marginalizadas e negligenciadas, que são temas de pautas e publicações internacionais (King e Wheeler, 2016). O reconhecimento dessa parcela da população, historicamente excluída dos serviços de saúde, seja devido à sua condição de raça, etnia, gênero, orientação sexual ou classe social é essencial para que se possa identificar e corrigir os fatores que as levam a ocupar e se manter nesse lugar.
Os desafios do cuidado integral para essas pessoas, contemplam os princípios de competência cultural, acesso e equidade inerentes aos profissionais da atenção primária. Portanto, cabe a SBMFC a garantia do debate, o aprofundamento, a formulação e o apoio à formulação de políticas de saúde que incluam esses temas.
Invisibilizar as demandas dessas pessoas e grupos permite a continuidade de violações e violências pessoais, estruturais e institucionais, como a agressão homofóbica sofrida por um participante na cidade do evento, a qual a SBMFC repudia com veemência.
Entendemos que o caminho que melhor garante a representação das diversas visões presentes em nossa comunidade científica e profissional são os processos democráticos de gestão e de organização dos eventos de nossa instituição. Congratulamo-nos com os associados que já participam desse processo e tem contribuído para a crescente qualidade e pluralidade de temas e perspectivas presentes em nossos eventos e convidamos a todos e todas que tragam suas contribuições para o fortalecimento de nossa especialidade. Todo mundo merece uma médica ou um médico de família e comunidade atualizado e solidário.
Gerring, J. (1997). Ideology: A Definitional Analysis. Political Research Quarterly, 50(4), 957–994.
McWhinney, I. (1981) Teaching the principles of family medicine. Canadian Family Physician, 27: 801-4.
Heath, I. (2016). How medicine has exploited rationality at the expense of humanity: an essay by Iona Heath. British Medical Journal, 355 :i5705
King TE, Wheeler MB. Medical Management of Vulnerable and Underserved: Patients Principles, Practice, and Populations. 2nd ed. McGraw-Hill Education, editor. McGraw-Hill Education; 2016.
McWhinney IR, Freeman TR. McWhinney’s Textbook of Family Medicine. 4th ed. New York: Oxford University Press; 2016.
Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – gestão 2018-2020
Endossam a carta, as Associações Estaduais de Medicina de Família e Comunidade:
Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade (APMFC)
Associação de Médicos de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro (AmFac-RJ)
Associação Gaucha de Medicina de Família e Comunidade (AGMFC)
Associação Brasiliense de Medicina de Família e Comunidade (ABMFC)
Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade (ACMFC)
Associação Capixaba de Medicina de Família e Comunidade (ACMFC)
Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade
Associação Cearense de Medicina de Família e Comunidade
Associação de Medicina de Família e Comunidade do Mato Grosso do Sul
Posicionamento publicado em 13 de novembro de 2018