A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, em conjunto com a Rede Feminista de Ginecologista e Obstetras, vem demonstrar repúdio à fala proferida pelo atual secretário da atenção primária do governo federal, Rafael Câmara Medeiros Parente, realizada durante o lançamento da nova caderneta de gestantes, no dia 4 de maio deste ano. Em sua fala, dentre outras coisas, o secretário censura o uso do termo violência obstétrica, defende práticas proscritas na assistência ao trabalho de parto, como a manobra de Kristeller e desautoriza o cuidado prestado pelas casas de parto. Consideramos essas afirmações um ataque aos direitos e ao cuidado em saúde humanizado e cientificamente respaldado de pessoas gestantes e pedimos pela saída imediata de Rafael Câmara Medeiros Parente do cargo de secretário de atenção primária à saúde.
Em todo o mundo, o debate sobre a qualidade da assistência obstétrica ganha uma enorme importância, já que que a mortalidade materna e infantil tem se configurado em desafio de saúde pública (1). No Brasil, o enfrentamento dessa problemática demanda uma avaliação atenta e totalizante, que dê conta das diferenças socioeconômicas, raciais e territoriais da população. Vale ressaltar que durante a pandemia o Brasil foi um dos países com maior mortalidade entre mulheres gestantes, com maior impacto entre mulheres racializadas e pobres (2). Também foi o país que realizou uma estratégia de vacinação não prioritária para territórios mais vulnerabilizados, além de ter adotado uma política pelo governo federal que, dentre outras coisas, incentivou uma suposta imunização de rebanho e o uso de medicações sem respaldo científico e adiou a própria compra das vacinas.(3,4)
Nós, médicos e médicas de família e comunidade, assim como obstetras e ginecologistas, que executam diariamente o acompanhamento pré-natal e assistência ao parto de pessoas gestantes e puérperas em serviços públicos de saúde; entendendo nosso papel técnico e político, não poderíamos nos omitir às falas do atual secretário da atenção básica do governo federal. Achamos pertinente elucidar alguns temas apontados pelo secretário, à luz de evidências científicas e princípios éticos da prática médica.
Em 1985, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou o documento Tecnologias apropriadas para o parto e nascimento (5), uma classificação das práticas de atenção ao parto e ao nascimento. Essas recomendações foram revistas em 1989 e novamente em 2018 (6,7), reforçando a classificação das tecnologias em aquelas que reduzem os resultados negativos na gravidez e no parto; aquelas promissoras, mas que requerem avaliação adicional; as práticas com efeitos desconhecidos com necessidade de avaliação adicional e as práticas que deveriam ser abandonadas à luz da evidência disponível.
Entre as más práticas estão: não envolver as mulheres nas decisões sobre seus cuidados; episiotomia rotineiras para o parto; administração rotineira de enemas ou supositórios e tricotomia; posição materna restrita durante o trabalho de parto, prescrição de sedativos ou tranquilizantes, repetição de cesariana rotineiramente após cesárea anterior, além do negligenciamento dos direitos das mulheres por conta de más condições estruturais dos serviços de saúde, como deixar as mulheres desacompanhadas durante o trabalho de parto e separar rotineiramente mães e bebês saudáveis.
No que diz respeito ao termo “Violência Obstétrica”, repudiado pelo secretário, vale apontar que esse termo tem sido utilizado para nomear uma problemática antiga que se refere ao tratamento desrespeitoso e abusivo que as mulheres podem sofrer por profissionais de saúde durante a gravidez, o parto e o período pós-parto (8). Pesquisas no Brasil registram dados alarmantes de cenário da violência obstétrica. Estudos apontam que 25% das mulheres relataram ter sofrido maus tratos durante o parto e apenas 5% delas tiveram parto sem nenhuma intervenção (9,10). Observa-se também que dentre pessoas gestantes, adolescentes, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível socioeconômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV têm maior chance de experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos (11). No Brasil, chamam atenção particularmente os dados de violência obstétrica sofridas por mulheres negras em relação a oferta de analgesia: mesmo após controle para variáveis sociodemográficas, os dados indicam um menor uso de analgesia nas mulheres pretas (12) e alguns estudos também evidenciaram uma menor oferta de procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, com menores proporções ainda para as de menor escolaridade (13).
Sobre a prática da episiotomia, pesquisa realizada pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em 2011-12 revelou que, no Brasil, a prática rotineira de episiotomia chega a 56% em todo o país e em quase 75% das primíparas. A OMS, já em 1996, classificava a episiotomia como uma prática prejudicial e desnecessária que deveria ser extinta. Como agravante, esse é um procedimento muitas vezes realizado sem o consentimento ou explicação prévia à mulher, outros tantos sem nem mesmo realizar anestesia prévia ao corte. Trata-se de uma mutilação genital que agride a integridade e autonomia da mulher e que não encontra respaldo de benefício na medicina baseada em evidências. (15,16)
Os dados sobre nascimentos no Brasil citados acima apontam para uma defasagem estrutural do atendimento em saúde prestado às gestantes, que coloca em risco a integridade física e a vida de milhares de brasileiras. Nesse sentido, muito nos espanta as colocações feitas pelo secretário que vão em direção contrária às boas práticas em atenção ao parto e ao nascimento. O secretário chega a defender o uso da manobra de Kristeller. Além de não existir quaisquer evidências de que pressão sobre o fundo uterino no período expulsivo (Manobra de Kristeller) tenha benefício para o feto ou para a mãe, há evidências de que a manobra aumenta o risco para complicações com fraturas, hematoma, rotura de órgãos moles entre outros (5,6,14).
Quanto a nova caderneta da gestante (17), lançada no evento da fala do secretário, observa-se que esse instrumento também traduz um retrocesso das políticas públicas, que deveriam estar comprometidas com a ciência e o bem estar das brasileiras. Ao invés de fornecer informações para guiar a gestante durante o seu acompanhamento pré natal e o parto, na nova caderneta da gestante foram excluídas informações importantes para pessoas gestantes, e adicionadas recomendações de condutas já proscritas e condenadas pela Organização Mundial de Saúde, assim como estímulos a atos de violência obstétrica (18). Foram eliminadas informações sobre o plano de parto, sobre o acompanhamento das doulas e sobre a realização do exame que diagnostica anemia falciforme, uma doença de maior prevalência na população negra – um atestado da falta de compromisso com essa população, tão comum neste governo (19). Há também, nesta nova caderneta, a normalização da infusão de ocitocina e do uso da amniotomia, facilitando a imposição dessas intervenções como rotina durante o parto sem critério clínico. A nova caderneta retrocede ainda mais quando descreve a possibilidade de que em algum cenário seja realizado a episiotomia, corte no períneo da mulher. Promove desinformação, recomendando a amamentação para prevenir gravidez nos primeiros seis meses, sendo essa prática insegura. Além disso, há ainda, na nova caderneta, uma sessão sobre cesarianas com informações enviesadas e em desacordo com a recomendação da OMS. Esta nova caderneta da gestante não é só um retrocesso, mas uma ameaça à saúde e um perigo à integridade física da mulher.
Defendemos que os sistemas de saúde são responsáveis pela maneira com que as mulheres são tratadas durante o pré-natal, parto e puerpério. Tal assistência deve ser desenvolvida por meio de políticas públicas de saúde como prevê o SUS, com mecanismos de acompanhamento claros sobre direitos, normas éticas, políticas de combate à violência obstétrica e o racismo institucional, linhas de cuidado, protocolos e instrumentos científicamente embasados.
Referências:
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