Para vacinar, é preciso ter vacinas. O mundo todo passou 10 meses, mais de 300 dias de 2020 envolvido com a questão da pandemia e os meios para superá-la.
A busca por uma vacina, como intervenção eficaz neste processo, fez parte da agenda de pesquisadores, institutos, gestores e organizações nacionais e internacionais da área da saúde, e presidentes das diferentes nações.
Pesquisadores ocupados em desenvolver e estudar os efeitos e a eficácia dos produtos. Gestores, organizações e chefes das nações ocupados em proceder os planejamentos e as negociações cabíveis para garantir que as vacinas chegassem em tempo ótimo e oportuno em seus países; também ocupados em providenciar recursos humanos e os insumos necessários ao processo e em estabelecer um plano nacional de vacinação compatível com a capacidade de produção/aquisição de doses a ser disponibilizada, paralelamente à capacidade instalada de seus respectivos países para realizar a vacinação em massa.
Inúmeros aspectos fizeram parte deste cenário: capacidade gerencial dos governantes; capacidade de produção de vacinas em cada país; estabelecimento de parcerias técnicas entre institutos de pesquisa e empresas de produção de medicamentos; planejamento para compra de seringas e agulhas na quantidade necessária; ação para redimensionamento dos serviços de saúde, desde a atenção primária aos centros de terapia intensiva; ação junto às agencias reguladoras nacionais da área da saúde para liberação e uso de medicamentos e insumos; negociação com outros países caso algum insumo essencial à produção das vacinas fosse de domínio predominante, exclusivo ou patenteado por alguns países; capacidade técnica para negociar e, especialmente, capacidade e competência política e diplomática para lidar com a competitividade internacional que já se configurava a nível mundial. Teria sido fundamental também ter trabalhado junto a estados e municípios no sentido de conformar um plano nacional de vacinação, evitando competitividade interna e criando condições para ações colaborativas.
Pois bem, o governo brasileiro, liderado por um presidente negacionista, que desde sempre desdenhou a pandemia (“gripezinha”), se mostrou indiferente às mortes (“todo mundo tem que morrer um dia”) e o sofrimento de milhões de brasileiras e brasileiros que adoeceram; um governo que até hoje lidera orientações cientificamente condenadas para uso de medicamentos ineficazes para a COVID 19; que incentivou e promoveu aglomerações e falou contra o isolamento social, pois bem o governo brasileiro falhou em praticamente todas estas etapas. Além disso, vale destacar, temos um ministro da saúde que segue mentindo acintosamente em diversas entrevistas coletivas quando nega que o Governo Federal tenha orientado o tratamento precoce para covid19 com medicações sem nenhum respaldo científico, sendo que foi recentemente lançado pelo governo federal um aplicativo/site (Tratcov) com orientações para prescrições eletrônicas automáticas de medicamentos ineficazes e com potencial iatrogênico, e quando afirma que as tratativas para busca de insumos para vacinas junto à China vinham sendo feitas.
Por outro lado, vemos governantes estaduais e municipais se movimentando, alguns de forma desordenada e falaciosa, investindo ainda no “tratamento precoce”, além de falharem gravemente na estruturação de serviços e de suporte de oxigênio para as vitimas que se avolumam mais e mais, junto com as mortes. O caso de Manaus é de uma crueldade inumana.
Neste momento, após a liberação da ANVISA para uso da vacina CORONAVAC Brasil; após a FIOCRUZ e o Instituto Butantã terem assegurado a sua capacidade produtiva de vacinas, de modo a termos uma perspectiva concreta de vacinação da população brasileira (embora ainda sem um plano decente de vacinação nacional), até meados de 2021, o Brasil “descobre” que um elemento essencial para que as vacinas sejam produzidas, o IFA – sigla para Ingrediente Farmacêutico Ativo, existente em quantidade expressiva na Índia e na China, não vão ser disponibilizados neste momento para o Brasil, na quantidade esperada, desmontando o planejamento inicial e jogando no chão a esperança da população brasileira.
A pergunta é por que?
A resposta vem mais uma vez denunciando a incompetência e a irresponsabilidade do governo federal que tomou medidas inaceitáveis do ponto de vista da política externa.
Com a Índia, o Brasil se colocou contra este país na sua solicitação de liberar a patente das vacinas, agindo, por razoes ideológicas, favorável ao governo de Trump, contrariando assim a própria lógica de atuação do Brasil, que faz parte do conjunto de países de economia emergente que conformam os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O Brasil foi o único país em desenvolvimento a declarar abertamente que era contra a proposta, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios aos países mais pobres.
Com a China, as dificuldades estão colocadas há tempos e provocadas pela irresponsabilidade e falta de diplomacia da família Bolsonaro que, inicialmente acusou a China de “produzir” o vírus, depois de pensar que a “China viria atrás do Brasil para negociar”…
Até agora, também, não houve aproximação com o governo russo, para considerar a vacina Sputnik V, que já vem sendo usada em vários países, inclusive na Argentina. Também não fizemos nenhum movimento formal com a Pfizer e a Moderna. Também não há notícias de qualquer movimento em busca da análise e obtenção de outras 44 (quarenta e quatro) vacinas que já vem sendo estudadas em humanos das quais 10 (dez) se encontram na fase 3 do processo de validação.
Ou seja, somos um dos países mais populosos do mundo, uma das economias mais pungentes do mundo e nos comportamos como um país pequeno, incapaz, incompetente e irresponsável.
Conclusão: temos neste momento apenas seis milhões de doses garantidas para o Brasil — apenas as da CoronaVac. Nem metade das doses necessárias para a metade dos grupos prioritários da primeira fase. Vivemos um confronto permanente do nível federal com os governos estaduais, principalmente o de São Paulo. Alguns municípios projetam que a vacinação da população se estenderá até julho de 2022!
Neste cenário de escassez de vacinas, o que fazer?
Sem a devida orientação e coordenação do MS sobre o detalhamento dos grupos prioritários, os estados e municípios estão sozinhos tendo que lidar com a pressão e dilema em meio a uma oferta de vacinas para apenas um terço da demanda do grupo prioritário da primeira fase.
Infelizmente, observamos muitos municípios desconsiderarem que os profissionais das equipes de Saúde da Família e da Atenção Primária à Saúde também são profissionais da linha de frente que têm sido reconhecidos nacionalmente por estarem cumprindo um papel essencial na pandemia, atendendo à demanda espontânea de pacientes sintomáticos respiratórios e o acompanhamento clínico de pacientes com COVID19.
Neste contexto, a SBMFC está atenta ao desenrolar dos acontecimentos e participa ativamente da Frente pela Vida que reúne diversas instituições de caráter técnico e científico, no sentido de promover ações e tomar iniciativas que possam dar um fim a esta situação de calamidade pública que o povo brasileiro vive e convive, provocada por absoluta incompetência e irresponsabilidade do governo federal.
Há que se apurar responsabilidades e punir os responsáveis por tanto descalabro.
Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Gestão 2020-2022
Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 2021.