Posicionamento da Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade sobre o Decreto 10.530 de 26 de outubro de 2020
A diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) vem perante os seus sócios e a sociedade em geral manifestar-se em relação a publicação do Decreto 10.530 de 26 de outubro de 2020 da Presidência da República, co-assinado pelo Ministério da Economia, que “dispõe sobre a qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada.”
A população brasileira foi surpreendida com a publicação de um decreto com foco nas políticas de Atenção Primária à Saúde (APS) sem que houvesse diálogo prévio com o Conselho Nacional de Saúde, CONASEMS, CONASS e com as diversas entidades do país que tem como foco o estudo das políticas de APS, como a SBMFC. Mais uma vez temos a não abertura do Governo Federal para o diálogo num momento onde precisaríamos reunir estas diversas entidades no fortalecimento do SUS e da APS para o enfrentamento da pandemia de COVID-19, que já ultrapassa 5 milhões de casos e mais de 150 mil mortos.
Já há uma constante falta de diálogo nas definições das políticas de saúde desde 2019 e com a falta de transparência para onde este conjunto de medidas aponta.
A publicação deste Decreto no atual momento de desmonte e desfinanciamento do SUS, com perdas progressivas de recursos em função da Emenda Constitucional EC 95/2016 que congela os gastos públicos e o anunciado corte de R$ 35 bilhões no seu orçamento para 2021, não pode ser compreendido como ação isolada. Há um contexto de políticas que vão ao encontro do processo de privatização da Atenção Primária à Saúde e do próprio SUS.
Historicizando este processo, vemos que em 2019 foi lançado o Programa Médicos pelo Brasil com a criação da Agência Para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) com a perspectiva de substituir o Programa Mais Médicos na alocação de médicos na APS brasileira com contratação através da ADAPS, que institucionaliza o processo de terceirização da contratação no setor. Em seguida, ainda em 2019, foi lançado o Previne Brasil com mudanças no financiamento da APS que passa de uma lógica de vigilância territorial e de cuidado ampliado para um financiamento por capitação. Ainda que estas ações pareçam não interligadas ambas abrem um espaço importante para uma lógica gerencialista e produtivista de cuidado que torna o setor mais atrativo ao capital privado. Já em 2020, em meio ao caos ocasionado pela pandemia, surge a concretização da ADAPS também por meio de decreto, com posterior nomeação de seus representantes.
E agora, com não menos importância e apontando para uma lógica de privatização na APS, vemos este decreto onde ações que seriam do âmbito do Ministério da Saúde são deslocadas ao Ministério da Economia através do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI para elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Neste sentido, vale lembrar que experiências de gestão baseados na parceria público-privada, a exemplo das Organizações Sociais – OSs já demonstraram não ser mais efetivas que modelos de prestação direta. Modelos com OSs carregam ônus de maiores custos administrativos ao setor público para execução dos contratos, facilitação de corrupção e outras irregularidades divulgadas na grande mídia. Investimentos estatais apostando na terceirização podem lograr algum êxito inicial, mas se mostram pouco sustentáveis, com fácil desmonte, afora precarização cada vez mais intensa do trabalho em saúde, desperdiçando esforços e profissionais qualificados, como pode ser visto no caso recente do Rio de Janeiro.
Além disso, a abertura à iniciativa privada mercantiliza necessidades de saúde, aproveitando-se da capilaridade da APS e da vulnerabilidade da população, possivelmente incentivando despesas por determinados procedimentos dispensáveis e iatrogênicos que tanto podem interessar a grupos privados quanto restringir, em sistemas de gerenciamento com fins econômicos, práticas assistenciais necessárias. A multiplicidade de prestadores na lógica da livre iniciativa e concorrência causa entraves à coordenação do cuidado e complica o acesso à saúde. Ademais, a atenção integral à saúde da população implica em gastos que historicamente no Brasil, mesmo para pessoas ricas, não são arcados pela iniciativa privada.
Práticas da APS que não interessem a grupos econômicos correm risco de serem suprimidas, como atividades voltadas para as populações mais vulneráveis e o enfoque diferenciado em questões de racismo, gênero e violência, além da abordagem crítica sobre determinantes sociais do processo saúde-adoecimento nos territórios de atuação das equipes.
O SUS conta com um orçamento aquém das necessidades, que lhe permite dispender apenas 45% do total de recursos da Saúde no país, apesar de proporcionar cobertura universal e assumir inteiramente a responsabilidade pelo cuidado integral a 75% da população do país. Já o setor privado capta recursos que lhe permite dispender 55% daqueles gastos no atendimento de apenas 25% dos brasileiros. Agraciada com uma invejável política de isenção fiscal e ainda receber outras vantagens concedidas pelos órgão públicos às operadoras de planos e seguros de saúde subtraem recursos que poderiam ser investidos no SUS. Neste contexto, o povo brasileiro subsidia o setor privado que ganha duplamente, ao cobrar pagamento de mensalidade a todos os associados às respectivas carteiras de serviço.
É evidente que o SUS demanda, como qualquer sistema de saúde do mundo, aprimoramento contínuo de seus instrumentos de gestão e de sua implementação, mas exatamente pela complexidade da construção das políticas de saúde isso precisa ser feito a partir de pactuações democráticas, envolvendo as entidades do Controle Social, através do Conselho Nacional de Saúde, bem como os demais entes federativos, gestores do SUS, entidades científicas e sociedade em geral.
Assim, neste momento onde o SUS tem sido essencial no enfrentamento da pandemia de COVID-19 salvando milhões de pessoas, deslocar a discussão do seu subfinanciamento para soluções mágicas advindas do sistema privado sem nenhuma discussão com a sociedade, não parece ser uma saída justa com a história e o papel do SUS na sociedade brasileira. O SUS é um dos maiores patrimônios da nossa sociedade!
Enfim, diante de todo o exposto, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade manifesta seu posicionamento contrário aos termos do decreto 10.530 de 26 de outubro de 2020 e às demais iniciativas de privatização da Atenção Primária à Saúde dentro do SUS e conclama a sociedade em geral e suas entidades representativas para conformação de uma Frente ampla em Defesa do Sistema Único de Saúde e da Estratégia Saúde da Família.