SBMFC alerta para a possibilidade de retrocessos na política de atenção à saúde mental no país
A Reforma Psiquiátrica brasileira foi desenvolvida a partir de diretrizes propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e consolidada através de Lei Federal (10.216/2001). Determina a substituição do modelo hospitalocêntrico (cuja história no Brasil foi frequentemente associada à violação de direitos humanos) por serviços descentralizados e multiprofissionais. Estes serviços têm a capacidade de evitar internações na grande maioria dos casos, substituindo-a por atendimento por Equipes de Saúde da Família (ESF), com apoio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) seja no atendimento aos pacientes, seja no matriciamento das ESF, permitindo o atendimento comunitário e inserido no contexto das pessoas.
No último dia 14 o Ministério da Saúde aprovou na Comissão Intergestores Tripartite sua proposta de reformulação da Política Nacional de Saúde Mental, que chama atenção pela possibilidade de desmanche da rede de serviços existente. A proposta permite a ampliação do financiamento de leitos em hospitais psiquiátricos, na contramão do movimento antimanicomial, além de direcionar boa parte do orçamento (30%) para financiar Comunidades Terapêuticas e propor a criação de serviços ambulatoriais de psiquiatria além dos já existentes nos CAPS.
Em um cenário de congelamento dos recursos destinados à saúde pelos próximos 20 anos aprovado pelo mesmo governo no final do ano passado (Emenda Constitucional 95), decretar aumento de repasse financeiro a estas instituições obrigatoriamente significa retirar recursos dos serviços que já existem, colocando em risco os avanços obtidos pela atual RAPS (Rede de Atenção Psicossocial).
Além disso, investir tantos recursos nas chamadas Comunidades Terapêuticas (CT) pode trazer prejuízos graves: esses serviços não são recursos da saúde, exigem apenas a presença de um responsável técnico de nível superior: não sendo um equipamento da saúde, não há garantia de tratamento adequado dos transtornos mentais. Ainda, muitas CT seguem modelos religiosos, e são baseadas no isolamento do indivíduo do seu contexto social por longos períodos, sem embasamento científico para tais medidas. A criação de novos serviços ambulatoriais em detrimento do fortalecimento da RAPS atual pode, por fim, duplicar serviços num cenário escasso de recursos financeiros e comprometer a resolutividade do cuidado oferecido às pessoas com problemas de saúde mental.
Para melhor dimensionamento e planejamento dos leitos de internação de quadros agudos, é necessário uma uma discussão regionalizada desta demanda buscando a substituição progressiva dos leitos de hospitais psiquiátricos, por leitos em hospitais gerais e dos CAPS, como vinha sendo realizado, embora de forma lenta e mal distribuída pelo país. Em algumas localidades em que os leitos em hospitais psiquiátricos ainda forem imprescindíveis para atender as situações agudas, sugere-se uma mudança na política de financiamento que induza a um cuidado integral, humanizado, multiprofissional, que busque uma brevidade da internação, e estimule a transição do cuidado para o domicílio ou residenciais terapêuticos, através de novas pactuações, parâmetros e indicadores, com fiscalização e monitoramento das equipes gestoras tripartites.
A política precisa ser revista no que tange ao fortalecimento do papel da atenção primária como ordenadora do cuidado na RAPS, para isto é imprescindível a estruturação de forma universal das equipes de saúde da família para funcionar plenamente com acesso a todos pacientes, manejando os problemas mais comuns, e compartilhando o cuidado com os demais níveis da rede, de acordo coma necessidade de cada situação. Para qualificar este manejo compartilhado é fundamental que tanto os NASF quanto os CAPS estejam interligados em uma rede regionalizada realizando matriciamento das equipes de saúde da família, de forma presencial e/ou através do telessaúde.
A SBMFC registra sua preocupação com possíveis retrocessos na política nacional de saúde mental e segue defendendo o diálogo como principal recurso para a elaboração de políticas públicas, sempre com base nas melhores evidências científicas e experiências nacionais e internacionais.