SBMFC: O que caracteriza a Medicina Rural?
Kamila: Medicina Rural, como o próprio nome já diz, trata da prática de medicina generalista no ambiente rural, marcada por aspectos geográficos e logísticos; contudo, a característica rural vai muito além de ser apenas “isolamento” ou áreas de difícil acesso, pois envolve questões econômicas, políticas, sociais, culturais, ambientais e históricas peculiares de cada região. Portanto, o que caracteriza a medicina rural é o desenvolvimento da prática de medicina generalista em toda a sua pluralidade e profundidade, trazendo a prática em atenção primária orientada para a comunidade, contando com pouco recurso tecnológico (no contexto Brasil) e alta resolutividade, incorporando aos conhecimentos científicos os saberes populares e culturais locais.
SBMFC: O médico que deseja atuar na área precisa de alguma especialização?
Kamila: A prática do médico rural demanda flexibilidade, inovação e criatividade, nós necessitamos ir além dos conhecimentos básicos de medicina de família e comunidade, buscando conhecimentos específicos das problemáticas vividas na comunidade e procurar ser resolutivo com os recursos disponíveis, que em sua maioria são escassos.
O médico rural deve saber lidar desde questões da atenção primária à saúde, mas também atendimentos de urgência e emergência que necessitam de suporte hospitalar, procedimentos cirúrgicos mais simples, parto, fitoterapia, acupuntura e outros conhecimentos de áreas específicas de acordo com a demanda. Além disso, devido ao vazio assistencial que assola essas regiões brasileiras, o médico em sua maioria encontra uma necessidade em buscar informações e capacitações em áreas especializadas, tais como infectologia (principalmente), reumatologia, pneumologia, ortopedia e outras. Muitas vezes essa busca de conhecimento vai além da medicina, navegando por aspectos culturais regionais, biologia, botânica, antropologia, entre outros.
SBMFC: Qual a indicação para o MFC que deseja atuar em áreas com características geográficas específicas que impactam diretamente na saúde do paciente? (falta de saneamento, falta de água, seca extrema, falta de acesso a grandes cidades)
Kamila: Cada território rural tem suas características específicas e se o MFC atuante deseja desempenhar um bom trabalho deverá trabalhar em conjunto com a comunidade, avaliando questões de saúde pública e determinantes sociais, entendendo as intempéries e outros acontecimentos sazonais, avaliando qual o impacto desses na saúde local e na dinâmica da comunidade. Buscando, também, quais são as estratégias que os comunitários já vêm desempenhando, realizando um diagnóstico situacional e um planejamento junto com a equipe e a comunidade.
O MFC rural é primeiramente o médico de comunidade. É primordial o desenvolvimento desta última parte da especialidade que nos denomina, “comunidade”, que muitas vezes fica esquecida no meio urbano ou soterrada pela demanda. A prática de atendimento à comunidade pressupõe que você a conheça e se integre a ela, conhecendo suas características geográficas, questões sazonais, culturais e históricas. O médico faz parte da comunidade, pois passa a integrar e viver também naquele local, construindo relacionamentos profundos com a comunidade.
Não existe uma indicação específica para cada contexto. O médico deve conhecer o seu território e ter ferramentas que o auxiliem no diagnóstico, para que em cada situação ele possa ir atrás desse conhecimento.
A falta de saneamento, por exemplo, é uma problemática que aflige todo o país. Somente 42,67% dos esgotos do Brasil são tratados (fonte: http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil). Quando vamos buscar dados referentes a coleta de esgoto e tratamento, esse número é ainda mais preocupante: na região norte, por exemplo, é a pior do país, com 4,92% referente a população atendida com esgoto/população total, e o índice de tratamento desse esgoto é de 1,18%, tendo um alto impacto na saúde local, aumentando o índice de doenças de veiculação hídrica nessas regiões. Ratificando, é mister que o médico que atue nessas regiões conheça a comunidade e suas características em sua totalidade.
SBMFC: Geralmente, o MFC que atua em determinadas regiões atende desde em consultas de acompanhamento até atendimento de casos graves. Como se preparar para que possa atender a todas essas intercorrências no mesmo dia?
Kamila: Devido às características de distância e logísticas, como generalista acredito que a melhor forma para atender a população seria oferecer acesso avançado na sua totalidade, assim como o médico ir se capacitando para atendimentos de urgência e emergências clínicas e cirúrgicas, treinando a equipe e estruturando a UBS para que tenha suporte mínimo para estabilizar o paciente até o transporte para um grande centro.
Desta forma, o MFC rural consegue atender a grande maioria das demandas em saúde da comunidade, pois atende no momento que necessita e como é o médico de referência tem maior facilidade em detectar os casos de maior complexidade e urgências que realmente necessitam serem encaminhados. Portanto, acredito que a “chave” para a resolução deste problema é a vivência na comunidade e conhecendo os pacientes, pois assim o médico aumenta seu potencial de resolução e de trabalho, permitindo manejar situações difíceis e críticas.
SBMFC: No Brasil, quais regiões há necessidade de médicos rurais?
Kamila: Por residirmos em um país com grande extensão territorial, temos grandes vazios assistenciais à saúde e dentre estes a grande maioria consistem em áreas rurais. Mesmo com a implementação do Programa Mais Médicos visando a interiorização dos médicos, ainda contamos com grandes áreas sem cobertura e sem atendimento à saúde, principalmente na região norte, onde a proporção de médicos é bem inferior a 1 por 100 mil habitantes, a menor do país.
Há necessidade de se ter equipes de saúde completas que possam desempenhar o atendimento à saúde rural, também fixar esses profissionais no local, pois atendimentos sazonais e eventuais não suprem a necessidade em saúde de uma população, pois saúde vai além de somente atendimentos.
SBMFC: Não só no país, mas no mundo todo, mais da metade da população vive na zona rural e não na urbana, porém há uma concentração desigual na proporção médico/habitante. Há uma justificativa?
Kamila: A dificuldade de acesso, a distância de grandes centros urbanos, aliados à falta de vivência na graduação e na especialização em meio rural levam a menor migração de médicos para essas regiões. Além disso, a fixação seria facilitada se houvesse incentivo com melhora da estrutura de trabalho, disponibilidade de equipamentos e valorização salarial, que no meio rural tende a ser inferior aos salários dos médicos urbanos. Na minha vivência, o médico rural trabalha a maior parte do tempo em situações extremas, com alto nível de estresse por pressão assistencial, secundária a ausência de suporte do estado nas regiões, populações dependentes do SUS com baixo poder aquisitivo, sem renda e em situação de extrema pobreza, sem saneamento básico e educação.
Assim, o profissional necessita ter uma alta capacidade de criatividade e resolutividade, com um perfil profissional e pessoal para adequar-se a esta situação. Somado a isso, os grandes centros de formação de médicos concentram-se em grandes capitais, logo a maior parte dos formados tendem a ficar nessas regiões, demonstrado na proporção médico/habitante, onde a grande contração de médicos é nas regiões sul e sudeste e grandes capitais.
SBMFC: Há alguma carência ou atenção específica direcionada à população rural que o médico sempre deve estar atento?
Kamila: Problemas de saúde pública, comunitária, e questões econômicas sempre devem fazer parte do escopo da atenção dirigida do médico de comunidade, pois estas estão diretamente ligadas à saúde.
SBMFC: Indicaria artigos/estudos sobre o assunto?
Kamila: Para quem está à procura de conhecer um pouco de medicina rural temos o Rural Medical Education Guidebook (RMEG), produzido pelo Wonca, que traz várias questões de saúde rural e a atuação do médico rural. Um livro que gosto muito é “O Povo Brasileiro”, do Darcy Ribeiro, que é um livro que nos instiga a buscar conhecer a população dos nossos “brasis” e quem sabe despertar um interesse na interiorização dos médicos.
Membro da SBMFC, Kamila é médica de família e comunidade da Prefeitura Municipal de Santarém, atuando principalmente nos seguintes temas: cuidados paliativos, atenção primaria, terapias complementares, terminalidade e qualidade de vida.