SBMFC entrevista José Carlos Campos Velho: vamos falar sobre Slow Medicine?

1 de março de 2018

 José Carlos Campos Velho é coordenador da Slow Medicine Brasil*.

SBMFC: O que é Slow Medicine? 

José Carlos: Uma definição ou conceito de Slow Medicine é que se trata de uma filosofia e um conjunto de princípios que propõe um novo paradigma para a prática médica, ou talvez um resgate de valores imemoriais do cuidado médico. Poderíamos afirmar que existem quatro “pilares” que balizam a Medicina sem Pressa, como seus marcos norteadores: o tempo, a relação médico-paciente, o compartilhamento das decisões com o paciente e seus familiares e o uso ponderado da tecnologia. Propõe uma medicina Sóbria, onde fazer mais não significa fazer melhor,  Respeitosa, que toma como invioláveis os desejos, valores e expectativas dos pacientes e Justa, na medida em que propõe um amplo acesso à serviços de saúde de qualidade.

 

SBMFC: Quando e por que a medicina sentiu necessidade de aplicar um conceito como esse? 

José Carlos: As últimas décadas  se caracterizaram por enormes avanços tecnológicos na área médica, tanto em termos de possibilidades diagnósticas, como terapêuticas. Porém, a tecnologia acabou distanciando os profissionais de saúde dos pacientes, e a utilização excessiva de recursos diagnósticos acabou por gerar situações de sobrediagnóstico (“overdiagnosis”) e sobretratamento (“overtreatment”). Como outros movimentos contemporâneos com objetivos semelhantes, a Slow Medicine sugere que a pessoa volte a ser o centro da atenção médica, buscando o Cuidado Apropriado, na medida certa, para aquele indivíduo, respeitando sua singularidade. Apropriado, no caso, significa, nem de mais, nem de menos.

 

SBMFC: Como chegou ao Brasil? 

José Carlos: A publicação do livro “O Doente Imaginado” de Marco Bobbio, cardiologista italiano, através do  esforço do Professor Dario Birolini, nosso mentor e precursor da iniciativa. Posteriormente sua visita ao Brasil em dezembro de 2014, quando foi entrevistado nas páginas amarelas da revista Veja, marca a chegada da Slow Medicine no Brasil.  

 

SBMFC: Por que existe a necessidade de aplicar o programa em âmbito mundial? 

José Carlos: A Slow Medicine não é um programa nos moldes tradicionais. De certa maneira, é uma expressão do “Zeitgeist”, o espírito de nosso tempo e abriga várias  iniciativas que enriquecem o pensamento e a prática médica. O distanciamento entre profissionais de saúde e pacientes, o uso excessivo de tecnologia, a pressa e a falta de tempo não respeitam fronteiras, culturas ou nível socioeconômico. Então as ideias da Slow Medicine encontram terreno fértil em todo o mundo, pois, mesmo em se respeitando as particularidades de cada país, esta filosofia encontra ressonância em realidades muito diferentes. Muitos dos problemas apontados são comuns, e as sugestões para seu enfrentamento podem ser semelhantes.

SBMFC: É uma realidade no Brasil? Existem países modelos que possam ser seguidos? 

José Carlos: Em verdade, muitos profissionais já praticam a Slow Medicine mesmo desconhecendo o seu nome. Tanto em serviços públicos como privados, existem médicos comprometidos com o melhor cuidado ao seu paciente, procurando sempre estar atentos as suas necessidades, com um ouvido para uma escuta respeitosa e uma palavra para orientá-los, construindo relacionamentos sólidos ao longo do tempo. Aos poucos, a Slow Medicine hoje vem se tornando uma expressão conhecida dos profissionais de saúde, através de nosso site – talvez a maior concentração de informações sistematizadas do mundo sobre Slow Medicine, dos eventos que temos participado, da nossa presença mídia e nas redes sociais. E nossas fontes são as iniciativas internacionais, mormente o Movimento Italiano. Porém estamos criando uma Medicina sem Pressa com tempero brasileiro: praticamente todo o material divulgado em nosso site www.slowmedicine.com.br é produzido por autores brasileiros, refletindo a nossa realidade. 

 

SBMFC: Como a Slow Medicine Brasil pretende alcançar todas as especialidades médicas, mesmo com o apelo das indústrias e empresas de equipamentos médicos? 

José Carlos: Bem, qualquer especialidade médica, em particular aquelas em que o contato com o paciente faz parte do cotidiano, pode se beneficiar da adoção dos princípios e da filosofia da Slow Medicine. Sabemos que estes princípios não representam o veio principal da medicina como é praticada hoje, não somos “a corrente principal”. Procuramos nos manter afastados de conflitos de interesse, pois acreditamos que eles criam enormes vieses na prática médica, o que pode levar ao comprometimento da isenção na tomada de decisões e gerar prejuízos para os pacientes. 

 

SBMFC: Pode citar exemplo de aplicabilidade da Slow Medicine diretamente em pacientes? 

José Carlos: Como geriatra, creio que os idosos são um grupo de pacientes que se beneficiam da desaceleração do processo de tomada de decisões, de um cuidado maior na proposição de investigações diagnósticas e de intervenções terapêuticas, levando em conta o tempo adequado para uma reflexão cuidadosa e a ponderação de riscos e benefícios associados a cada decisão médica. Polipatologia e Polifarmácia são situações frequentes em Geriatria, e a Slow Medicine oferece instrumentos para seu enfrentamento, como as estratégias de desprescrição.

 

SBMFC: Os pacientes lidam bem com a "aceitação daquilo que não se pode evitar", mesmo em uma sociedade ansiosa por exames e prevenção? 

José Carlos: Sabemos que a prevenção primária é a que traz maiores resultados. Hábitos e atitudes saudáveis, alimentação equilibrada, moderação no consumo de álcool, uma vida fisicamente ativa, a evitação do tabagismo, o uso de capacetes, camisinha e cintos de segurança certamente trazem enormes benefícios para a pessoa. Intervenções médicas como vacinação, diagnóstico precoce de diabetes e hipertensão e seu tratamento adequado também tem o seu lugar como medidas relevantes, bem como acesso à água potável e condições sanitárias. Enfim, uma prevenção Slow preocupa-se com as questões ambientais e com a sustentabilidade, inclusive dos sistemas de saúde, onde hoje observa-se muito desperdício. Prevenção vai muito além de fazer exames e tomar medicamentos. Exige uma atitude existencial de cuidado consigo próprio e com o outro. Acreditamos que este caminho ofereça perspectivas mais enriquecedoras para a pessoa e a sociedade. A questão relacionada à “aceitação do inevitável” mostra o claro entrelaçamento entre as ideias da Slow Medicine e os Cuidados Paliativos, uma tendência em franco crescimento dentro da prática médica atual. Felizmente.

 

SBMFC: Na realidade atual, o médico tem condições de fazer um atendimento individualizado no Sistema Único de Saúde? 

José Carlos: Esta é uma questão que sempre surge. Claro é que o tempo que os profissionais dispõe para que possam aplicar os princípios da Slow Medicine em sua prática diária no serviço público de saúde é inadequado. Sempre sugerimos que não há uma necessidade de que todos os princípios sejam adotados em todos os atendimentos. Se o profissional se propuser a uma escuta cuidadosa por mais 5 minutos em algumas situações, deixar de prescrever um medicamento ou de solicitar um exame de baixo valor para outro e orientar por 3 minutos um paciente quanto à necessidade de mudança de hábitos, ele já estará praticando a Slow Medicine. Em uma ocasião, uma questão foi colocada: somente será possível fazer Slow Medicine quando o profissional for remunerado de maneira justa (o que consideramos absolutamente correto) pelo SUS ou pelo convênio. Nossa ideia é diferente: sugerimos que os princípios da Medicina sem Pressa sejam utilizados quando o próximo paciente sentar à sua frente…. Da maneira como for possível no seu ambiente de trabalho, seja o consultório, o pronto-socorro, a unidade de terapia intensiva ou o posto de saúde. Slow Medicine também é um estado de espírito.

Uma outra maneira de praticar a Medicina sem Pressa no SUS é através de um número maior de consultas, onde problemas diversos podem ser abordados em momentos diferentes, ao longo do tempo. E onde a atenção multiprofissional é uma ferramenta poderosa para que várias outras questões possam ser abordadas, onde não necessariamente a terapêutica farmacológica é a escolha mais adequada. A Slow Medicine olha com simpatia para as práticas integrativas, que eventualmente podem oferecer possibilidades de cuidados menos danosos e que são uma estratégia do SUS. 

 

Não esquecendo que a medicina privada muitas vezes se utiliza de maneira excessiva de recursos diagnósticos e terapêuticos, com um grande risco de sobretratamento e de danos iatrogênicos aos pacientes. Ser assistido em um hospital privado de primeira linha nas grandes capitais brasileiras não é garantia de um cuidado sóbrio e respeitoso. É importante salientar isso.

 

SBMFC: Gostaria de sugerir estudos e materiais para complemento? 

José Carlos: Neste sentido, repetindo o que já afirmamos anteriormente, nosso site hoje talvez reúna o maior número de informações sistematizadas do mundo, em qualquer língua, sobre Slow Medicine. Nossa sugestão é que as pessoas explorem o site; provavelmente lá encontrarão as referências que necessitam para conhecer melhor nossas ideias, nossos princípios e nossa filosofia. Estamos presentes nas redes sociais.  A nossa newsletter pode ser assinada e o assinante recebe semanalmente as atualizações do site em sua caixa postal. Temos participado de eventos na área da saúde e organizado encontros, onde com frequência temos participação expressiva de médicos de família. Pois esta é outra confluência que temos enorme clareza: Slow Medicine e Medicina de Família e Comunidade. Estas duas perspectivas da atenção à saúde se nutrem mutuamente. 

 

José Carlos Campos Velho é médico geriatra e clínico geral, é formado pela Universidade Federal de Santa  Maria, Rio Grande do Sul, em 1984.  Iniciou a prática médica em uma pequena comunidade rural no interior de Santa Catarina. Durante muitos anos trabalhou em Atenção Primária, em saúde  pública, em prática de Medicina de Família e atendimento de urgência,  particularmente na periferia da Grande São Paulo.