SBMFC: Por que o check-up não deve ser feito?
Antônio Modesto: Eu não diria exatamente isso. As pessoas devem se sentir à vontade para procurar um médico se estiverem preocupadas com sua saúde ou eventuais doenças; se quiserem saber sobre comportamentos que influenciem a saúde; se, por alguma dúvida, quiserem ser examinadas. O problema é tentar convencer pessoas saudáveis de que elas devem frequentar médicos periodicamente para detectar doenças assintomáticas, e de que essa prática protegerá suas vidas da doença e da morte.
O primeiro problema é instalar uma “cultura do terror” mediada pela autovigilância: as próprias pessoas vigiam seus corpos, não é preciso mais que empregadores ou o Estado o façam. Ademais, o Estado tem diminuída sua responsabilidade sobre a saúde dos indivíduos, na medida em que o adoecimento pode ser relacionado à “falta de cuidados preventivos” pelo cidadão.
Outro problema é que boa parte desses check-ups consistem em pacotes pré-definidos de acordo com sexo e faixa etária. Mesmo em consulta, muitos médicos pedem a mesma “bateria de exames” – costumeiramente ampla –para pessoas com características muito diferentes. Nesse contexto, inúmeros exames são pedidos desnecessariamente, seja por sua inutilidade naquela pessoa, seja por sua inutilidade como exame de rastreamento em geral.
Finalmente, cada especialidade quer destaque para sua prevenção particular: os dermatologistas com o câncer de pele, os endocrinologistas com o câncer de tireoide, os cardiologistas com a hipertensão arterial, os cirurgiões cardíacos com o aneurisma de aorta… A pessoa passaria o ano indo em consultas mensais se atendesse a todos esses apelos.
SBMFC: Quais são as probabilidades de exames realizados anualmente terem resultados falsos positivos?
Antônio Modesto: As faixas de referência dos exames são calculadas em uma curva de Gauss e representam 95% da população. Ou seja, considera-se que quase toda a população – mas não toda! – tenha seu resultado dentro daquela faixa. Isso significa que é esperado que 5% das pessoas – uma em cada vinte! – terão um resultado menor que o mínimo ou maior que o máximo, independentemente de estarem doentes ou não. Assim, um exame desnecessário pode fazer alguém sem doença receber um tratamento desnecessário por conta de um exame alterado.
Além disso, os resultados dos exames merecem mais ou menos confiança conforme o contexto em que são aplicados: uma dosagem de creatinina alterada entre adolescentes de uma escola pública não tem a mesma, digamos, “relação com a verdade” do que o mesmo exame alterado entre idosos de um asilo – mas o exame alterado precisa ser investigado. Exame pede exame – é o que se chama de “cascata diagnóstica”.
Minha mãe tem os leucócitos em 3.000; a faixa dita normal é de 4.000 a 10 ou 11 mil, dependendo do laboratório. Ela nunca teve infecções de repetição nem doenças oportunistas, mas precisou fazer diversos hemogramas em vários momentos para ter certeza de que não tinha uma doença.
SBMFC: Quais exames realmente devem ser feitos como rotina e com qual periodicidade?
Antônio Modesto: Isso depende das características e expectativas de cada pessoa. Exames mais universais incluem medida de pressão arterial anualmente a partir dos 18 anos; sorologia para HIV, sífilis e hepatites em pessoas que já tiveram relações desprotegidas; Papanicolaou a cada três anos a partir de 25 anos; mamografia a cada dois anos a partir dos 50 anos – aliás, mesmo a indicação da mamografia tem sido progressivamente questionada. Outras ações preventivas incluem vacinas para crianças, adolescentes e adultos; aconselhamento sobre não fumar e sobre usar preservativos; enfim, não apenas exames.
SBMFC: Como o médico de família pode orientar o paciente sobre a importância da não realização dos check-ups? Tem algum caso para ilustrar?
Antônio Modesto: Muitas pessoas procuram médicos e médicas estimulados pela mídia, por amigos ou familiares; vem realmente receosas de que possam ter uma doença e não sentirem nada. Essas pessoas costumam ficar aliviadas quando são bem examinadas e quando lhes dizemos que há, sim, uns poucos exames a fazer e alguns cuidados a tomar visando uma vida com mais saúde, mas muito menos invasivos e numerosos que o que elas esperavam.
Outras usam o check-up como uma oportunidade de colocar algum assunto que a preocupa – como medo de ter contraído HIV ou uma dor que ela teme ser câncer. Essas, se não têm sua demanda oculta identificada, podem acabar fazendo exames desnecessários, que provavelmente não terão a ver com o problema que tinham. Essas situações indicam que sempre que uma pessoa compareça ao consultório dizendo-se saudável e pedindo um check-up, o médico deve perguntar por que ela deseja isso, o que a motivou a buscar isso nesse momento. Às vezes as pessoas nos dão pistas que devem ser aproveitadas, às vezes com perguntas mais fechadas, como “você está preocupado com alguma doença em especial?”. Ainda assim, perguntas abertas, como “o que mais?”, devem ser preferidas, pelo menos inicialmente.
SBMFC: Na sua opinião, a política de excessos na medicina, seja por realização de exames, seja por uso de medicamentos (vitamínicos, suplementos, entre outros), sem necessidade, é prejudicial socialmente ao paciente? Caso positivo, em quais sentidos (econômico, social, cultural)?
Antônio Modesto: Sim. Um problema bem objetivo é que procedimentos desnecessários implicam em gastos desnecessários – seja para a pessoa ou para o governo, que, enfim, também é para todas as pessoas. Culturalmente, a medicalização acaba minando as estratégias de enfrentamento das pessoas, deixando-as dependentes do círculo profissional da saúde. Qualquer dor, alteração nas fezes, tosse, passa a merecer uma consulta médica o mais rápido possível. Não há espaço para o tempo, o chá, o banho, a erva, o colo, o remedinho pra dor – aliás, ai de quem se automedique! Alguns médicos dizem que “os pacientes vão no pronto-socorro à toa”: nós e a indústria farmacêutica ensinamos a eles que podem sempre ter uma doença grave, que, quanto mais cedo descoberta, melhor.
Antônio Augusto Dall’Agnol Modesto é membro da SBMFC, Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) com residência em Medicina de Família e Comunidade pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2010). Doutor em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2016). Professor de Atenção Primária à Saúde Interdisciplinar na Faculdade de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo. Pesquisa e atua em Atenção Primária à Saúde; Medicina de Família e Comunidade e Ciências Humanas em Saúde, com interesse nos temas de Prevenção quaternária; Necessidades e demandas de serviços de saúde; Saúde do homem; Masculinidade; Próstata; e Disfunção erétil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
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