Saúde indígena: os desafios da Atenção Primária em Saúde na lógica da interculturalidade e da atenção diferenciada

19 de abril de 2018

 

No Dia do Índio, datado em 19 de abril,  as populações tradicionais brasileiras apresentam-se sob risco de perda de direitos e aumento da sua vulnerabilidade

Os indígenas, que integram os povos das florestas, formam uma população conhecida não só pela maior vulnerabilidade às doenças e epidemias, mas também pela vulnerabilidade de ordem estrutural, caracterizada pelas crescentes restrições aos seus territórios de vida e de expressão da sua identidade. As barreiras de acesso estão presentes não somente no âmbito da saúde, mas também na educação, saneamento básico, alimentação, dentre outras. As referências legais definidas na Constituição de 1988 que determinam, no campo da saúde, o acesso diferenciado, levam em conta a valorização da interculturalidade e dos saberes tradicionais na oferta de cuidado, ainda são aplicadas de forma muito tímida. Cabe a nós refletir, nesse dia 19 de abril, sobre como a APS aos povos indígenas têm sido produzidas em atos, levando-se em conta o desafio do diálogo intercultural, da valorização dos saberes tradicionais e frente ao distanciamento das políticas públicas de recuperação, prevenção e promoção à saúde nesse contexto. Certamente, em tempos em que se discute a redução da oferta de serviços do SUS, não há dúvida que dentre os mais penalizados estarão as populações vulneráveis, como os povos indígenas. O desafio do presente dia se configura na aplicabilidade real dos marcos legais da Carta Magna de 1988, representado pelo apelo civilizatório de valorização dos nossos povos ancestrais. A realidade, porém, mostra ainda uma APS centrada na visão etnocêntrica da sociedade nacional, que na sua aplicabilidade, dialoga de forma muito tímida com as especificidades dos 254 povos indígenas originários das Américas que vivem em território brasileiro.

         Em 2010, foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) como forma de garantir o acesso à saúde a esses povos a partir dos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS), aplicados ao contexto da interculturalidade, que visa abordar os problemas mais comuns na comunidade, oferecendo serviços de prevenção, cura e reabilitação para maximizar a saúde e o bem-estar, levando-se em conta os diferentes entendimentos de saúde e bem-estar dos nossos povos originários. A APS no contexto indígena, operacionalizada por 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, apresenta o desafio de garantir acesso e integralidade do cuidado, baseado no diálogo intercultural e na valorização dos saberes tradicionais específicos de cada povo. A questão que se coloca, após 8 anos de gestão federativa da SESAI, é como a APS, desenhada para ser a porta de entrada preferencial de acesso à saúde no âmbito do SUS na sociedade nacional pode ser replicada como oferta de cuidado aos povos tradicionais? A perspectiva de território, por exemplo, aplicada às sociedades indígenas, está mais relacionada aos valores já definidos pela sociedade nacional, caracterizados pela ideia de confinamento, demarcação e restrição ao espaço, que impedem a existência de outras territorialidades, de outros espaços de vida dos indígenas, que nem sempre se encaixam com a práxis determinada pela sociedade envolvente.

Ainda há a dificuldade de fixação de médicos nesse ambiente rural. A maioria dos profissionais está concentrada em grandes centros urbanos, onde a oferta de trabalho é maior e o acesso aos bens e serviços, como escola para os filhos e bons hospitais, é mais segura. Deve-se levar em conta também que nossas escolas médicas não inserem nos seus currículos a devida atenção ao tema da saúde indígena, as disciplinas que dialogam de forma transversal com temas de antropologia médica também são muito tímidas, competências culturais que são fundamentais nesse contexto não recebem a devida atenção nos bancos das universidades. Os médicos de família e comunidade inseridos no território rural, são aqueles mais preparados por meio de competências culturais para atuar nesse ambiente. Sua formação permite dar um novo significado aos conceitos como saúde, cuidado, doença, relação com a terra e com a natureza. A percepção da importância do diálogo intercultural nesse contexto, com a valorização de características como alteridade e a fuga da perspectiva etnocêntrica única tornam-se um potente fator para formação de vínculos, tanto na sua dimensão individual como coletiva, características a que o médico de família está habituado a vivenciar e praticar nos ambientes rurais. O cuidado compartilhado e pautado no diálogo entre raizeiros, parteiras, pajés, benzedeiras e os membros de Equipe Mista de Saúde Indígena representam o modelo virtuoso de cuidado oferecido nesse espaço.

         Os desafios da APS no contexto indígena não se resumem apenas aos eixos aqui colocados. A atenção diferenciada demanda de ações intersetorais entre os entes federativos. Os serviços de saúde municipais dos locais onde as aldeias estão localizadas apresentam importante papel de apoio, como fornecimento de vacinas, insumos e construção das redes de referência de média e alta complexidade. A FUNAI, por sua vez, apresenta importante papel na realização de ações estruturantes que impactam diretamente nos determinantes sociais da saúde. Ações do terceiro setor também papel fundamental na construção da autonomia e da autodeterminação dos povos indígenas e que colaboram, dentre outras atividades, para a efetiva formação dos conselhos de saúde indígena.

Um trabalho integral na saúde indígena se faz com limites menos rígidos para a atuação dos profissionais pertencentes à equipe, que se complementam com relação aos papéis de cada um. Essa população tem necessidade dos serviços de saúde como qualquer outra, levando-se conta os determinantes de maior vulnerabilidade. Portanto, ter um acesso adequado não só aos médicos, mas aos insumos complementares a esse atendimento é essencial para preservação da existência e da sua autodeterminação. Em tempos potencialmente sombrios para o SUS,  é nesse Dia do Índio que é importante ampliar a discussão e conscientização do acesso de saúde a todos, independentemente da cultura e do local onde residem ou transitam.

Paulo Afonso Martins Abati (UNICAMP), Maria Carolina Pereira da Rocha (PUC-SP) e Fábio Miranda Junqueira (PUC-SP) são membros do GT Rural da SBMFC.