5 de julho de 2016
A medicina passa por uma enorme transformação. Há quem diga que um dia foi uma arte depois virou uma ciência e hoje é um comércio. Provavelmente é verdade. Mas ao mesmo tempo que avança nesse sentido recebe cada vez mais resistência com suas respectivas lideranças.
O casal Juan Gérvas e Mercedes Pérez Fernández constituem duas das principais lideranças desse movimento contrário ao abandono total da medicina como arte e ciência. O avanço tecnológico é o principal pano de fundo para esta perda de identidade mas ele não começou agora. Este avanço tecnológico começou há muitos anos e de fato tem sido usado para o
processo de comercialização da medicina. É uma falácia dizer que caminham necessariamente juntos.
Ao longo dos diversos capítulos, os autores dão inúmeros exemplos de avanços tecnológicosúteis como as vacinas sistêmicas de proteção populacional (difteria, poliomielite, rubéola,caxumba, tétano e coqueluche). Por outro lado, sempre descrevem com minúcia e muita base científica como uma idéia que emergiu das pesquisas e do avanço tecnológico foi distorcida pela gana financeira, em especial da indústria farmacêutica, para se transformar em algo sem sentido ou perigoso por ser desconhecido, como a vacina contra o papilomavirus humano (que é chamada de vacina contra o câncer de colo sendo que os estudos no seu conjunto não demonstraram proteção contra o câncer). Em alguns temas os autores podem assustar o leitor ao desmistificar “doenças graves” como melanoma. De fato, são problemas de saúde potencialmente fatais mas que mesmo assim há aspectos que precisam ser debatidos, em especial a procura exagerada por eles e o potencial sobrediagnóstico decorrente.
Uma das principais premissas usadas pelos autores é o aforisma primum non nocere (primeiro não causar dano), um lema antigo da medicina e que parece abandonado. Hoje muitos estudantes de medicina aprendem exatamente o contrário, ou seja, na dúvida intervém. Muitos nem sabem explicar exatamente porque ou dizem que faz parte do “protocolo”. É a
medicina baseada no “telefone sem fio” ou na experiência pessoal.
Um segundo pilar usado pelos autores é a Lei de Cuidados Inversos descrita na década de 70 pelo ilustre médico de família britânico Julian Tudor Hart. Segundo esta “lei” quem mais precisa recebe menos cuidado. Isso ocorre desde a repulsa por pacientes mal vestidos ou desdentados até a organização do sistema em si que privilegia os mais saudáveis. Juan e Mercedes sempre vão lembrar os leitores que o que mais tem impacto na saúde são os chamados determinantes Sociais da Saúde (emprego, lazer, saneamento básico, etc..). Eles fazem a necessária e rara ponte entre o nível micro e macro, entre o que ocorre dentro do consultório, a organização dos serviços e as políticas de saúde.
Um terceiro pilar usado é a Medicina Baseada em Evidências que reestruturou a publicação científica e a epidemiologia clínica de tal forma que conseguiu desmoralizar a opinião de especialistas que vinha crescendo de importância ao longo do século XX, até encontrar na década de 80 e 90 esta proposta valorizada pelos autores e que de fato deve ter salvo muitas e muitas vidas, embora a indústria farmacêutica busque um método para utilizar a seu favor e contra a ciência.
O livro é voltado para o público leigo e para profissionais da saúde. Juan e Mercedes tem uma linguagem muito própria e coloquial. Sempre ao final dos capítulos eles conversam com o leitor como se fossem seus pacientes e sugerem o que realmente funciona: aproveitar a vida,ter momentos com os filhos e netos, se alimentar saudavelmente (culinária mediterrânea, como não podia deixar de ser) e fazer atividade física que dê prazer.
O leitor acostumado com publicações científicas vai reparar que o livro não tem referência bibliográfica. Quem conhece os autores sabe que não falam uma frase sem uma boa referência, que em geral sabem de cor. É impressionante a quantidade de artigos e informações relevantes com muita base científica que Juan Gérvas é capaz de guardar. Enfim, confesso que demorei para me acostumar porque a cada parágrafo marcava vários trechos para procurar as referências. Todas as vezes que pedi por e-mail vierem todas que eu queria
em menos de 24 horas. Nenhuma biblioteca do mundo é mais eficiente. Juan também sugeriu procurar no Google com palavras-chave e de fato funciona, embora não tanto quanto um e-mail para os autores. E cumprem o que dizem divulgando os e-mails (jjgervas@gmail.com e mpf1945@gmail.com) no início do livro.
Escrevo estas linhas recém chegado de Bilbao onde fui acompanhar um dos Seminários de Inovação em Atenção Primária organizados pelos autores. Foi um momento impressionante.Tenho o Juan e a Mercedes como meus mestres há mais de 10 anos quando os vi em um seminário organizado para comemorar os 25 anos de Alam Ata em Brasília. Desde então nunca mais deixei passar uma semana sem ler algum texto ou comentário sobre algum artigo que o Juan publica nas diversas redes sociais. Vi que hoje divido meu mestre com milhares de pessoas. Fiz um esforço na agenda de meio de semestre para levar minha filha de 8 anos nos dois dias de seminário para que saiba a importância de termos mestres. Mais do que isso, a importância de sabermos escolher os mestres. Se os critérios forem domínio do campo estudado, ética, dedicação e compaixão, acho que escolhi bem.
Ao longo do livro Gérvas e Mercedes nos lembram a todo momento a importância da desigualdade social como uma das principais causas de doença e sofrimento. Como profissionais da saúde não temos controle sobre a pobreza. Mas temos muito a fazer. O mais relevante é não fecharmos os olhos para a miséria e deixar que os mais pobres e que mais precisam cheguem até nós. Muitas vezes é a única coisa que precisamos fazer e não fazemos, mesmo quando somos remunerados para isso.
Gustavo Gusso
Médico de Família e Comunidade
Outono de 2016