Dirigido pelas irmãs Ana e Helena Petta e vencedor do Festival É Tudo Verdade 2022, um dos principais prêmios do cinema nacional, o documentário “Quando Falta o Ar” foi exibido hoje em sessão exclusiva para a seleta audiência do 17º CBMFC.
Nem a conspiração do chamado contratempo foi capaz de segurar o êxito da apresentação. Uma plateia fiel ficou firme, enquanto eram solucionadas interpéries tecnológicas. Valeu: médicas e médicos de família e comunidade acompanharam cada cena embevecidos e emocionados; muitos engolindo em seco algumas lágrimas.
Take a take
Rafaela Pacheco, diretora de comunicação da SBMFC, deu as boas vindas à plateia para o início do filme. Destacou que a apresentação vinha para abrilhantar ainda mais o CBMFC.
“É uma obra com a marca da nossa cultura, da nossa brasilidade. Todos temos de nos empoderam e devemos nos apossar disso como uma construção da Medicina de Família e Comunidade. O processo de construção de “Quando falta o ar” foi uma experiência incrível, inclusive para ver a multidão que se envolve para uma arte dessas se concretizar”. Aproveito e faço um paralelo com as multidões que a gente precisa para construir o SUS. São as multidões da gente que vão construir saúde, educação, todos os direitos ameaçados nesse país historicamente. Vamos em frente, pois cuidado é cura, cultura também é cura”
Logo após, antes ainda de a exibição começar, falaram brevemente Ana, Helena Petta. Teve a palavra também Eli Baniwa, uma das médicas de família retratadas na obra:
“Sou do médio Rio Negro, no Amazonas e estou no Pará. Essas duas – disse referendo-se às irmãs Petta – chegaram a mim inexplicavelmente, uma conexão que tinha de acontecer”, relatou sob aplausos. Veio então exibição de “Quando falta o ar” e uma troca de ideias com o público, que mostrava-se tocado e ainda mais determinado a travar boas lutas.
Veja agora entrevista exclusiva com Helena e Ana Petta
CBMFC: Nesta manhã, os congressistas tiveram a oportunidade de assistir a “Quando falta o ar”. Do que se trata a obra?
Helena: “Quando falta o ar” é um filme feito em 2020, durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19, momento em que Ana e eu visitamos as cinco regiões do Brasil mostrando o trabalho das mulheres no SUS. Fomos ao Morro da Conceição, em Recife; a Castanhal, comunidade ribeirinha no Pará; a Salvador, a Manaus e a outros locais, passando por complexos penitenciários e territórios indígenas, por exemplo. Acompanhamos profissionais como a agente comunitária Conceição Maria Vicente e as médicas Andreia Beatriz, Rafaela Pacheco e Ely Baniwa, que está conosco hoje, no CBMFC. Recebemos com muita alegria o convite da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, até porque a Andreia, a Rafaela e a Ely, são MFCs. É um prazer, uma honra.
O que acontecia no nosso país enquanto vocês filmavam? O que seus olhos testemunharam?
Ana: Naqueles meses de tanta resistência e luta pela vida por parte das trabalhadoras do SUS, vivíamos sob os desmandos de um governo negacionista, que atrapalhou a chegada das vacinas, que não incentivou o uso de máscaras, que tomou uma série de decisões que levaram tanta gente à morte. Disso se trata o documentário, com foco na atenção primária.
Em que condições vocês encontraram os espaços de saúde? Como estavam unidades básicas, hospitais?
Helena: Encontramos esses espaços em situação crítica, estávamos no auge da pandemia. Mesmo no Hospital das Clínicas, em São Paulo, que é um exemplo de lugar bem equipado, todos os andares foram transformados em leitos de Covid. Se ali, com toda aquela infraestrutura, faltavam leitos de UTI, dá para imaginar como estavam outros lugares. Ainda assim, é claro que havia regiões mais carentes, como Manaus. Testemunhamos a falta de oxigênio, na virada de 2020 para 2021. Pensávamos que tudo melhoraria depois da primeira onda, mas veio a crise, pessoas tentando entregar cilindros de oxigênio aos familiares internados, porque os hospitais já não ofereciam o básico. Situações tristes, de muita precariedade. No entanto, o objetivo do nosso filme é mostrar que havia gente lá, trabalhadoras e trabalhadores enfrentando os riscos para cuidar, na medida do possível e do impossível, de quem precisava.
Vocês são médicas?
Helena: Eu sou médica e diretora, a Ana é atriz e diretora.
Como vocês se protegiam do vírus enquanto filmava?
Helena: Fazíamos muitos, muitos, muitos testes, usávamos equipamentos de proteção o tempo todo, ficávamos só entre nós, equipe, não saíamos, não encontrávamos familiares ou amigos. Éramos nós duas, diretoras, o Léo Bittencourt, diretor de fotografia, o Matias Bruno, técnico de som, e produtores locais. Era uma equipe reduzida, porque em espaços como UTIs de Covid, só se permitia a entrada de uma, duas pessoas. Era perigoso para todos nós, sim, tínhamos medo, mas vimos a importância de desenvolver esse trabalho para criar uma memória. Uma memória da resistência, do que foi feito pelo SUS.
Você chorou em algum momento, Helena?
Helena: Em vários. Quem assistiu ao filme, viu o paciente que tinha acabado de ser extubado e pediu para a equipe colocar uma música do Amado Batista. A equipe colocou, ele se emocionou e contou que a esposa havia falecido de Covid e que tinha vários netos e bisnetos à espera. Nessas horas, olhávamos um para o outro e nos emocionávamos muito. O povo brasileiro é tão bonito, com sua cultura, sua música, sua religiosidade, tentando sobreviver àquele pesadelo.
E você, Ana?
Ana: Também. Eu me lembro do memento em que a gente entrevistou uma profissional que trabalhava na lavanderia do hospital em Castanhal, no Pará. Falando sobre seu trabalho, ela pontuou que tinha muito orgulho de colocar um lençol limpinhos para os pacientes. “Quem não gosta de um lençol limpinho?”, ela perguntava. De certo modo, é um carinho. Ainda mais se a gente pensar que esses pacientes estavam sozinhos, longe da família. O trabalho dessa senhora tem um valor imenso, isso me emocionou e emociona bastante. É o trabalho dos “invisíveis”, das pessoas que tantas vezes não percebemos.
Sobre o filme
O documentário aborda a luta dos agentes de saúde do SUS durante o ano de 2020, e que, naquele momento, atuavam sem uma coordenação nacional. A trama das diretoras paulistas também expõe as implicações do atraso na oferta de vacinas no Brasil e a crescente disseminação da covid-19, que resultou na vitimação de milhares de pessoas. Busca capturar a subjetividade do cuidado em saúde que muitas vezes se expressam por meio do toque, do gesto e do olhar.