No último dia 16 de março o programa de residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Salvador (BA) realizou a sua aula inaugural anual e deu início às atividades do inovador R3 em saúde mental e cuidado com a população de rua.
Em entrevista à SBMFC, o MFC e coordenador do programa de residência em MFC da SMS de Salvador, Diego Bomfim, contou sobre o contexto, a proposta, o funcionamento e os desafios de criação deste R3.
Além de cuidar de um segmento populacional marginalizado e carente de acesso à saúde, Bomfim destaca que a inciativa tem dois objetivos que se retroalimentam: ampliar o campo de atuação da especialidade dentro da saúde mental e reforçar a luta pelo desenvolvimento da saúde mental na perspectiva da Reforma Psiquiátrica brasileira. Confira a entrevista.
Como começa a residência em MFC na SMS de Salvador?
O programa regular começa em 2019 com 8 vagas dentro da Coordenação de Gestão de Pessoas na Saúde (CGPS), setor da SMS de Salvador que encampou projeto de residências. Hoje temos 16 vagas autorizadas, mas disponibilizamos apenas 11 na R1. Esse ano iniciamos o R3 em saúde mental e cuidado da pessoa em situação de rua com 5 vagas autorizadas, mas só abrimos 3 vagas.
Qual é o contexto local que inspira a criação deste R3?
Salvador tem iniciativas potentes no campo da saúde mental. A primeira é o surgimento dos consultórios de rua, hoje muito ocupada por MFCs e também uma política do Ministério da Saúde (MS). A cidade também já teve programas de intensificação de cuidados a pacientes psicóticos, formando uma série de profissionais para cuidar das pessoas em liberdade, fora dos manicômios. Apesar disso, Salvador tem uma rede muito frágil de saúde mental e uma escassez de psiquiatras, uma realidade das regiões Norte e Nordeste.
E o contexto nacional?
Tivemos muitos avanços com a Reforma Psiquiátrica brasileira, muitos CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] foram construídos, mas há falta de CAPS 3, onde pode-se fazer internação, e de política de formação para o cuidado em liberdade. Nos últimos anos a política involuiu muito, com o fortalecimento de lógicas manicomiais, o financiamento de hospital psiquiátrico… Agora entendemos ser o momento de retomada.
E como a MFC pode contribuir nesse processo?
Formando profissionais MFCs que vão além do atendimento ambulatorial na APS, construindo conhecimento e se posicionando sobre as políticas de saúde mental na perspectiva da Reforma Psiquiátrica. Se as comunidades terapêuticas – financiadas hoje pelo próprio MS – não são uma boa, se as alternativas mais interessantes são tratamentos em liberdade, a partir da redução de danos e dos consultórios na rua, de que forma a MFC tem conseguido colocar no mercado profissionais que consigam fazer esse debate?
E como esse R3 pretende trabalhar essa formação?
O currículo baseado em competências da SBMFC fala muito pouco sobre a população em situação de rua e sobre R3. Somos o primeiro R3 em saúde mental e cuidado da pessoa em situação de rua que a gente tem no país, então tivemos o desafio de construir as competências avançadas. Para dar conta de tudo isso, temos 3 campos de estágio principais.
Um estágio numa unidade de saúde da família que já tem uma série de iniciativas no campo da saúde mental. Nessa fase o residente roda todas as demais 3 unidades ligadas ao nosso programa fazendo parte de uma equipe matriciadora. Vamos na unidade mensalmente discutir os casos de saúde mental do R1 e do R2 e pensar intervenções educativas com o restante da equipe.
Outro estágio é o consultório na rua, com campo noturno, reuniões de equipe, atendimentos ambulatoriais acompanhados por preceptores MFCs, rodagem em CAPS, CPAS 2 e CAPS3. Aqui o residente tem supervisão de psiquiatra para complementar a formação, em especial para o cuidado dos transtornos graves de saúde mental.
E o terceiro campo é uma parceria com a UFBA para desenvolver a intensificação de cuidados em saúde mental de pacientes complexos.
Haverá espaço de trabalho a ser ocupado por MFCs?
Considerando o cenário de escassez de psiquiatras e de mais formação de MFCs, teremos muitos locais que não terão CAPS e o cuidado de saúde mental cairá para o Programa Saúde da Família. O MFC com uma formação adicional não poderia trabalhar em outros espaços? Como equipes de matriciamento de saúde mental, como NASFs [Núcleo de Atenção à Saúde da Família], como CAPS com um MFC trazendo o saber médico, matriciado pelo psiquiatra, podendo também participar dos processos de cuidado do paciente? A MFC pode ajudar a psiquiatria no diálogo, no trabalho de equipe, na clínica psicossocial, na coordenação do cuidado. Temos como desafio evoluir o financiamento para R3 no país e pensar, do ponto de vista normativo, como esses profissionais poderão ser absorvidos de forma mais tranquila e segura em outros espaços da rede. Aqui, vamos buscar uma política municipal para isso. Seria interessante ter o mesmo a nível federal.