Posicionamento sobre as queimadas na região amazônica

31 de agosto de 2019

O Grupo de Trabalho de Medicina Rural da Sociedade de Medicina de Família e Comunidade vem manifestar sua preocupação com a ineficácia da política ambiental brasileira atual em garantir a preservação do patrimônio natural e humano rural brasileiro, agravada nas últimas semanas pelas queimadas na Região Amazônica.  O contexto rural é bastante diverso e heterogêneo, não se limitando a regiões agrícolas. Em que pese a dificuldade de conceituar objetivamente regiões rurais, a população que vive fora dos centros urbanos costuma ter piores indicadores de vida e saúde, realidade não apenas da população rural brasileira.

A prática das queimadas dos roçados pelos povos tradicionais das florestas, chamada de coivara, se constituiu como uma técnica agrícola tradicional caracterizada pelo manejo de pequenas áreas com a utilização do fogo para limpeza, longos períodos de repouso do solo e rotatividade de culturas e de áreas para plantio. As cinzas das queimadas, aliadas à rotatividade e variedade de culturas, na visão dos povos da floresta, conferem grande produtividade e controle das pragas, sem necessidade de uso de pesticidas e fertilizantes. Diferentemente da coivara, as queimadas na região Amazônica como as que estão acontecendo na estação de seca de 2019 representam 75% das emissões de dióxido de carbono segundo o IBGE e estão associadas a consequências significativas à saúde dos povos da floresta.

Os povos residentes da Amazônia representam uma mosaico de diferentes grupos.  Indígenas, caboclos, quilombolas e imigrantes de outras regiões que vivem às margens de rios e lagos na Amazônia brasileira, em áreas de planalto ou nas cidades distribuindo-se em uma área geográfica com cerca de 5.020.000km². A população ribeirinha vive sob influência das dinâmicas das águas (cheias e vazantes), e cada vez com maior nível de contaminação das suas águas pelo mercúrio dos garimpos ilegais,  os indígenas, por sua vez, veem seus territórios de vida cada vez mais restritos pela suspensão das demarcações das terras e o cerco das grandes propriedades de pecuária extensiva ou de monoculturas cada vez mais próximas de seus territórios. Nunca as áreas de garimpo ilegal cresceram tanto em territórios indígenas e das florestas nacionais, como o que a acontece na região Sudoeste do Pará, nos municípios de Itaituba e Novo Progresso. No último dia 10 de agosto, fazendeiros dessa região decretaram o Dia do Fogo. Segundo jornal local, produtores se sentem “amparados pelas palavras do presidente” e coordenaram a queima de pasto e áreas em processo de desmate. Dos 33.062 focos de incêndio identificados na última semana pelo INPE na Amazônia, 60% maiores em relação à média dos trabalhos anos anteriores, 33% ocorreram dentro de Terras Indígenas e em Unidades de Conservação, segundo dados do Instituto Socioambiental.

No que se refere à dinâmica entre a saúde e o adoecimento no contexto Amazônico, as interações entre o ambiente e o seus habitantes constituem um fator decisivo para a manutenção da saúde desses povos. As profundas relações de dependência do ambiente como fonte de alimentação, cuidado em saúde, baseado nos conhecimentos dos povos da floresta acerca das modalidades de cuidado tradicionais e o ambiente como elemento representativo de suas identidades culturais que, a partir de situações que promovam desequilíbrios nessa dinâmica, como as queimadas em larga escala, representam fatores de extrema vulnerabilidade em saúde aos povos tradicionais.

 Estudo de 2013 da Fiocruz, acerca da relação entre as queimadas e internações por doenças respiratórias em menores de cinco anos de idade em Rondônia, encontrou que  áreas com maior número de focos de queimadas diferiram daquelas com as taxas mais elevadas de internações por doenças respiratórias. Isso pode demonstrar a importância do deslocamento deste material particulado em longas distâncias na Amazônia. Pesquisa da USP intitulada “Biomass burning in the Amazon region causes DNA damage and cell death in human lung cells”, relatou associação entre as partículas das queimadas com inflamação, estresse oxidativo e danos genéticos nas células do pulmão que levam ao câncer. Além das queimadas, o desmatamento também está associado ao risco de transmissão de malária na região Amazônica. Estudo publicado na Scientific Reports evidenciou 27 novos casos de malária para cada km2 de área desmatada.

Existem agravos de saúde muito mais frequentes em áreas rurais, o que exige que o sistema de saúde esteja preparado para este cuidado. Mas sobretudo é necessário lidar com as diferenças culturais que se estabelecem entre profissionais, habitualmente oriundos e formados em áreas urbanas, e população. Neste contato, aprendemos que para a população rural os recursos naturais são um valor e que a preservação deles faz parte da própria perpetuação destas comunidades.

A saúde ambiental influencia a saúde de todos os seres humanos, pois todo o planeta está interligado. Assim como os fenômenos climáticos em outras partes do globo influenciam o regime de chuvas no Brasil, com impactos sociais e econômicos, o impacto das queimadas amazônicas no céu da maior metrópole do país evidencia que não é possível ignorar as consequências do mau planejamento da exploração dos recursos naturais. É imperiosa a adoção de uma agenda de desenvolvimento sustentável, que gere riquezas para a nação, mas que permita a sobrevivência e desenvolvimento das comunidades tradicionais e a preservação dos recursos naturais para esta e as futuras gerações de seres humanos.

Desta forma, como médicos das pessoas que vivem em áreas rurais e de suas famílias e comunidades, conclamamos toda a sociedade a refletir sobre esta questão e se posicionar por uma política governamental que efetivamente garanta a preservação do nosso meio ambiente.

Há, certamente, grandes desafios para que se possam atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, principalmente em relação à Saúde Rural, uma vez que há iniquidade e menor cobertura em saúde nessas áreas. Porém, defendemos que o olhar sobre a saúde dessas populações vá para além do conceito cartesiano de saúde, considerando a importância dos determinantes sociais neste contexto.

Ainda, não bastasse a dívida histórica que o Brasil tem com os povos do campo, da floresta e das águas, a falta de pensamento coletivo torna o abismo existente entre as condições de saúde do rural e do urbano ainda maior. Não se pode regredir agora. É preciso consolidar as boas práticas de incentivo à uma saúde cada vez mais equânime.  

Referências:

Instituto Socioambiental –  ISA mostra Terras Indígenas mais afetadas por incêndios na Amazônia brasileira- 23 de Agosto de 2019 disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/isa-mostra-terras-indigenas-mais-afetadas-por-incendios-na-amazonia-brasileira. Acesso em 27 de Agosto de 2019.

Distribuição espaço-temporal das queimadas e internações por doenças  respiratórias em menores de cinco anos de idade em Rondônia, 2001 a 2010,  Poliany Rodrigues, Eliane Ignotti e Sandra Hacon. FIOCRUZ.

  Oliveira Alves, N; Vessoni, AT; Quinet, A et al. Biomass burning in the Amazon region causes DNA damage and cell death in human lung cells. Scientific Reports  vol  7, Article number: 10937 (2017).

Chaves, L; Conn, J; Rossana V. et al. Abundance of impacted forest patches less than 5 km2 is a key driver of the incidence of malaria in Amazonian Brazil. Scientific Reports; v. 8, May 4 2018.