Pela inclusão da APS na rede de aborto legal no Brasil!

28 de setembro de 2023

Neste 28 de setembro de 2023, Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto da América Latina e Caribe, o Grupo de Trabalho (GT) Mulheres na Medicina de Família e Comunidade da SBMFC publica posicionamento pela inclusão da atenção primária à saúde na rede de aborto no Brasil.

Confira abaixo na íntegra.

Integralidade no Cuidado e Equidade no Acesso:
pela inclusão da Atenção Primária à Saúde na rede de aborto legal no Brasil!

 

“A defesa da justiça reprodutiva nos obriga a estar, cotidianamente, sujeitas ao tribunal da consciência. Pensando e repensando que não há escolhas se não há acesso. Não há acesso e escolhas se não há direitos. Não há acesso, escolhas e direitos numa sociedade racista, sexista, patriarcal e cis-heteronormativa, sem democracia e sem justiça.”

Fernanda Lopes

 

Em 1990, as mulheres latino americanas reunidas no 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho (EFLAC) escolheram o dia 28 de setembro como marco na luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe relembrando que na mesma data, em 1871, foi promulgada no Brasil, a Lei do Ventre Livre, que previa que as mulheres negras escravizadas dariam à luz apenas a bebês livres a partir de então.

Também em um 28 de setembro, em 2021, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, impulsionada pelos seus Grupos de Trabalho (GT) Mulheres na Medicina de Família e Comunidade, Saúde da População Negra e Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos, publicou posicionamento reafirmando seu atuar para diminuir as iniquidades em saúde e a favor da descriminalização do aborto, se comprometendo ao diálogo institucional com todas e todos no sentido do fortalecimento da APS e na construção de políticas públicas coerentes com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) (1)

Neste 28 de setembro de 2023, vivemos um momento histórico na luta pela vida de meninas, mulheres e das pessoas que podem gestar no Brasil pois, após cinco anos, se iniciou com o voto da Excelentíssima Senhora Ministra Rosa Weber o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, proposta em 2017 pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até as 12 primeiras semanas de gestação (2).

Entendemos que este é um momento fundamental para não só darmos visibilidade à luta pela descriminalização mas para ampliarmos a garantia dos direitos já estabelecidos na legislação brasileira com o direito à interrupção voluntária da gravidez nos casos de risco à vida materna, gravidez decorrente de estupro e anencefalia.

Por isso, no 17º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, realizado em Fortaleza em setembro de 2023, o Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade realizou a mesa redonda “Aborto Legal na Atenção Primária à Saúde (APS): Como, Quando, Onde e Por Quê?” (3)

Nessa oportunidade, foram aprofundadas as discussões do papel da Medicina de Família e Comunidade na assistência às gravidezes não intencionais e evidenciado que no Brasil ainda não seguimos a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) (4) de que o aborto legal seja ofertado em serviços de amplo acesso e integrados ao sistema saúde, possibilitando a realização com segurança e com custos reduzidos de forma ambulatorial enquanto centros hospitalares fiquem reservados para situações de maior risco, como gestações de maior tempo de evolução (5, 6).

No SUS, o procedimento segue restrito ao ambiente hospitalar, ofertado em grande parte em capitais e grandes cidades, sendo realizado por médicas e médicos gineco-obstetras acompanhadas(os) de equipe multiprofissional, o que gera grande estigmatização e barreiras ao procedimento previsto em lei,  tornando o acesso precário, principalmente, para as pessoas mais vulnerabilizadas da população: meninas e adolescentes, pobres, negras, periféricas e moradoras de áreas rurais e remotas (7, 8).

Os dados demonstram que 94% dos abortos legais realizados no Brasil são decorrentes de violência sexual. Devido subnotificação, estima-se que ocorram 822 mil estupros por ano no país e que ao resultar em gravidez de 5% à 7% casos, teríamos cerca de 40 a 56 mil gestações decorrentes de estupro anualmente, enquanto que são registrados menos de 2 mil casos de aborto legal por ano. Quem acessa o direito à interrupção de gravidez legal no país? Pesquisas demonstram o perfil das mulheres que realizam aborto legal: jovens (62% com 15 a 29 anos), solteiras (71%), escolarizadas (37% ensino médio) e católicas (43%) (9, 10).

Entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022 foram realizados 1.823 procedimentos de aborto autorizado por lei; destes 711 ocorreram em uma cidade diferente da que a paciente morava. Deste total,  4 em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde a mulher mora, 25 mulheres saíram dos seus estados para fazer o abortamento; e 6 dessas mulheres percorreram mais de 1000 km para ter o acesso ao seu direito, segundo levantamento realizado com com dados do SUS obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) (11).

Em 2019, 3 a cada 5 mulheres em idade fértil no Brasil viviam em municípios sem oferta de serviço de aborto legal ao passo que a APS, pela Estratégia Saúde da Família e sua presença em mais de 4000 municípios, poderia investir em criar cenários em que temos profissionais médicas e médicos que podem ser treinados e habilitados a assistir essas situações, já demonstradas pela literatura de forma altamente segura, com o aborto medicamentoso até 12 semanas de gestação com misoprostol (7).

Compreendemos que os atributos essenciais da Atenção Primária à Saúde – longitudinalidade, primeiro contato, coordenação do cuidado e acesso – estão diretamente relacionados com a potência de ampliar a rede de cuidado ao aborto legal de forma a ser um espaço de criação de vínculo e confiança, tornando possível a atuação multiprofissional e a identificação precoce de gravidezes em que a legislação brasileira permite a interrupção voluntária (5,6).

Assim como o voto da Ministra Rosa Weber evocou o conceito de Justiça Reprodutiva, enunciado historicamente pelos movimentos de mulheres  negras em defesa dos seus direitos sexuais e reprodutivos (12), reconhecemos que é papel das Médicas e Médicos de Família e Comunidade se comprometerem ética, técnica e profissionalmente com a garantia da realização do procedimento de forma segura, conforme previsto em lei para todas as mulheres e pessoas que tenham esse direito, especialmente as vítimas de violência sexual que atendemos no cotidiano da APS.

Dados do anuário do Fórum de Segurança Pública de 2023 (10) mostram recordes de registro de violência sexual no país: 74.930 vítimas reportadas. Em 2022, 88,7% das vítimas eram mulheres e 11,3% homens. Em relação à raça/cor, as pessoas negras mantêm-se como as principais vítimas da violência sexual numa desvantagem progressiva: enquanto em 2021, 52,2% das vítimas eram negras (pretas ou pardas), em 2022 estas foram 56,8% das vítimas, enquanto 42,3% eram brancas, 0,5% indígenas e 0,4% amarelas. Quanto à idade, cerca de 60% das vítimas têm entre 10 e 13 anos e são violentadas principalmente por pessoas familiares (10).

Sim, sabemos que será necessário rever protocolos, regulamentos, portarias; será necessário garantir a disponibilização de insumos como o misoprostol fora do ambiente hospitalar (e a revisão da Portaria da Portaria Agência Nacional de Vigilância Sanitária 344/1998), assim como treinar e qualificar médicas e médicos e demais profissionais das equipes para propiciar acolhimento, suporte, segurança e sigilo – antes, durante e depois do procedimento em uma rede articulada entre APS e atenção especializada.

Sabemos que não será fácil. Sabemos que estaremos quebrando paradigmas. Mas sabemos igualmente que estamos do lado das melhores evidências científicas disponíveis (4, 13, 14, 15) no sentido de garantir o acesso a um direito previsto no Código Penal Brasileiro desde 1940.

Assim como nosso posicionamento pela descriminalização, hoje assumimos novamente o compromisso ético no combate às iniquidades e em favor da promoção ativa da Justiça Reprodutiva como uma caminho de equidade e Justiça social para mulheres, meninas e pessoas que podem gestar, em especial àquelas que encontram mais barreiras no acesso ao aborto legal..

Nesse sentido, desejamos, com esse posicionamento, iniciar o diálogo com as diferentes instâncias do SUS: Ministério da Saúde (MS), especialmente a Secretária de Atenção Primária à Saúde (SASP) e a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), assim como as instituições da formação profissional, para construirmos juntos todas as etapas para que a APS seja o cenário de oferta da interrupção legal da gravidez de forma segura, ética e comprometida com os Direitos Humanos das meninas, mulheres e todas as pessoas que podem gestar.

“Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”
Lélia Gonzalez
1935 – 1994

28 de setembro de 2023,

Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade

 

 

REFERÊNCIAS:

  1. Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade e Diretoria da SBMFC. Posicionamento sobre aborto seguro. Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2021. Disponível em: sbmfc.org.br/site-antigo/noticias/posicionamento-gravidez-indesejada-sbmfc-e-gt-mulheres-na-mfc/
  2. Supremo Tribunal Federal do Brasil. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 442 DISTRITO FEDERAL. Relator: Ministra Rosa Weber. Voto 21 de setembro de 2023 Disponível: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514619&ori=1
  3. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. MFC é central para garantir direito ao aborto legal no Brasil. Entrevista Dra. Helena Paro. Fortaleza, 21 de setembro de 2023. Disponível em: sbmfc.org.br/noticias/mfc-e-central-para-garantir-direito-ao-aborto-legal-no-brasil/
  4. Diretriz sobre cuidados no aborto: resumo [Abortion care guideline: executive summary]. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2022. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/355465/9789240051447-por.pdf?sequence=1
  5. Maia MN. Oferta de aborto legal na atenção primária à saúde: uma chamada para ação. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 26º de janeiro de 2021 [citado 28º de setembro de 2023];16(43):2727. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2727
  6. Giugliani C, Ruschel AE, Belomé da Silva MC, Maia MN, Pereira Salvador de Oliveira DO. O direito ao aborto no Brasil e a implicação da Atenção Primária à Saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 23º de fevereiro de 2019 [citado 28º de setembro de 2023];14(41):1791. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1791
  7. Jacobs MG, Boing AC. What do the national data say about the supply and performace of legal abortions in Brazil in 2019? Cadernos de Saude Publica, v.37, n. 12, p. 1–13, 2021. Disponível em: scielosp.org/article/csc/2022.v27n9/3689-3700/
  8. Diniz D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista de Bioética 2014; 22:291-8. Disponivel em: scielo.br/j/bioet/a/M8yjvPkBpfLNKvrHJrtmBHq/?format=pdf&lang=pt
  9. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional. Ciênc saúde coletiva [Internet]. 2016Feb;21(2):563–72. Disponível em: /www.scielo.br/j/csc/a/L6XSyzXN7n4FgSmLPpvcJfB/#
  10. Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – 1 (2006)- . – São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf
  11. Farias, V.; Figueiredo, P. 4 em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde a mulher mora; pacientes percorreram mais de 1 mil km. G1, 09 de junho de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/09/4-em-cada-10-abortos-legais-no-brasil-sao-feitos-fora-da-cidade-onde-a-mulher-mora-pacientes-percorreram-mais-de-1-mil-km.ghtml
  12. Lopes F. Justiça reprodutiva: um caminho para justiça social e equidade racial e de gênero. Organicom [Internet]. 15 de março de 2023 [citado 28 de setembro de 2023];19(40):216-27. Disponível em: /www.revistas.usp.br/organicom/article/view/205773
  13. Morris, J. L; Winikoff, B; Dabash, R; Weeks, A; Faundes, A.; Gemzell-Danielsson, K.; et al. FIGO’s updated recommendations for misoprostol used alone in gynecology and obstetrics. International Journal of Gynecology & Obstetrics. set. 2017. Disponível em: https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ijgo.12181
  14. Fleming M, Shih G, Goodman S and the TEACH Collaborative Working Group* TEACH Abortion Training Curriculum, 7th Edition. UCSF Bixby Center for Global Reproductive Health: San Francisco, CA (2022). Bixby Doc: 2022-001(07/22) Disponível em: teachtraining.org/wp-content/uploads/2022/06/Teach-Workbook-Book6.30.22.pdf
  15. Antonella F. Lavelanet, Brooke Ronald Johnson, Bela Ganatra, Global Abortion Policies Database: A descriptive analysis of the regulatory and policy environment related to abortion, Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, Volume 62, 2020, Pages 25-35, Disponível em: sciencedirect.com/science/article/pii/S152169341930080X