Antônio Modesto, médico de família e comunidade, membro da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)
A aprovação do projeto de lei (PL) que autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética para pessoas com câncer entusiasmou pacientes, mas preocupou profissionais de saúde. Por um lado, pretende-se facilitar o acesso a um tratamento inovador a pessoas “sem alternativas terapêuticas eficazes”, nas palavras dos parlamentares, e que “não têm tempo para esperar testes”, nas palavras dos pacientes; por outro, há efeitos colaterais éticos e sanitários importantes. O PL (cujos autores incluem os deputados Celso Russomano e Jair Bolsonaro) aprova a prescrição de uma droga não testada, exigindo para tanto um laudo médico e a assinatura de termo de compromisso e responsabilidade pelo paciente – deixando aos usuários a responsabilidade sobre a ineficácia da substância ou mesmo os prejuízos decorrentes de seu uso. Ao mesmo tempo que valoriza sobremaneira a autonomia da pessoa sobre a própria saúde, a medida não condiz com as normas da ANVISA nem com o Código de Ética Médica, que estabelece que “o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas” (artigo XXI dos Princípios Fundamentais).
O desespero diante da falta de possibilidades terapêuticas torna pessoas com câncer alvos fáceis para soluções mirabolantes ou duvidosas. Tudo o que se podia afirmar sobre a fosfoetanolamina até a aprovação do PL é que ela era promissora, e os últimos testes mostram que talvez nem isso. De qualquer forma, é bom lembrar que antirretrovirais e talidomida já foram drogas promissoras, com resultados conhecidamente diferentes a longo prazo.
Não se trata de defender a supremacia da medicina sobre outros saberes, tampouco alegar a neutralidade da ciência: ambas são políticas, históricas e permeadas pelos mesmos ditames que regem a sociedade. Por isso mesmo, o PL em questão abre precedentes temerários e é muito conveniente para as empresas do complexo médico industrial, cujo lucro deriva em boa parte de vender remédios e procedimentos questionáveis. O PL da fosfoetanolamina é a porta para outros que autorizem a prescrição (e, claro, a venda) de remédios, exames e vacinas desnecessários ou não comprovadamente eficazes, arriscando a saúde da população e fortalecendo a medicalização da vida. Ademais, que parlamentar teria coragem de questionar projetos de lei que prometem beneficiar a saúde?
Diante do dilema entre facilitar acesso a um tratamento inovador, porém não comprovado, e o risco de danos à saúde e do uso da dor dos outros como plataforma política e mercadológica, outros caminhos são possíveis. Um deles é estimular e acelerar as pesquisas, captando tantos voluntários quanto possível e resultando em tratamentos seguros a eles e às gerações de pacientes que os seguirão.