“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…” Nise da Silveira, médica psiquiatra brasileira que, há 74 anos, iniciou uma revolução no cuidado em saúde mental de pacientes internados nos manicômios
Esta semana, o Ministério da Saúde deu sinais de um recuo de mais de 30 anos em relação às políticas de Saúde Mental no Brasil, e de mais de 50 anos em relação ao movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado na Itália.
Já se passaram 50 anos desde que o médico e psiquiatra italiano Franco Basaglia iniciou, em Triestre, o movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática, que a seguir produziu efeitos no restante do mundo através do movimento conhecido como Reforma Psiquiátrica. Já há 47 anos, em 1973, a Organização Mundial de Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como principal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental, de base comunitária.
A Reforma Psiquiátrica visou superar formas primitivas e limitadas de abordagem a pessoas com transtornos mentais que, não raramente, significavam maus tratos, violência física e psicológica, isolamento social, sedação permanente e internações de longa permanência (nos chamados manicômios), frequentemente em péssimas condições e qualidade de vida. O movimento de Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica nascem, então, profundamente marcados pela ideia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania. Faz parte central da Reforma instituir uma outra lógica no cuidado às pessoas com transtorno mental, a partir da construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias, de caráter inclusivo e libertário.
No Brasil, o Movimento da Reforma Psiquiátrica se iniciou no final da década de 70, em pleno processo de redemocratização do país, e em 1987 teve dois marcos importantes para a escolha do dia que simboliza essa luta (18 de maio), com o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru/SP, e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília.
Mas, somente em 2001, após mais de dez anos de tramitação no Congresso Nacional, é sancionada a Lei no 10.216. Esta Lei, afirma os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e reorienta o modelo assistencial em saúde mental, prevendo serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, buscando superar assim a lógica das internações de longa permanência, que acabam por isolar o paciente, quase como uma prisão, privando-o do convívio com a família e com a sociedade como um todo.
As bases da Lei sustentam que a atenção aos portadores de transtornos mentais passem a ter como objetivo o pleno exercício de sua cidadania, e não somente o controle dos seus sintomas. Para tanto, se faz necessário outro modelo assistencial com serviços diferenciados e abertos, incluindo a participação ativa das pessoas afetadas e constituindo redes intersetoriais, abrangendo educação, moradia, trabalho, cultura e outras.
Na década de 2000, com financiamento e regulação tripartite, amplia-se fortemente a rede de atenção psicossocial (RAPS), que passa a integrar, a partir do Decreto Presidencial no 7508/2011, o conjunto das redes indispensáveis na constituição das regiões de saúde. Entre os equipamentos substitutivos ao modelo manicomial estão os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência (Cecos), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais, as oficinas de geração de renda, entre outros. Atualmente o SUS conta com 2.661 Centros de Atenção Psicossocial em todo o país.
Neste contexto, o Brasil se evidencia como um dos países mais avançados na constituição de uma rede abrangente de cuidado em saúde mental contribuindo, de fato, para o desenvolvimento da autonomia e do empoderamento das pessoas afetadas.
A Atenção Primária, especificamente, a Estratégia Saúde da Família (ESF), com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), e com sua base territorial são um dos elementos essenciais na estruturação do cuidado aos pacientes com transtornos mentais, e seus familiares. A ESF tem capacidade de atender com resolutividade, assim como a outros problemas de saúde, pelo menos 85% das pessoas que apresentam transtorno mental. Pode realizar diagnóstico precoce, com uma abordagem centrada na pessoa, na família e na comunidade, desenvolvendo ações próximas e coordenadas, incluindo vistas domiciliares e acompanhamento contínuo, com atividades de promoção e educação em saúde, mas também de cuidado assistencial abrangente, com possibilidade de referenciar em tempo oportuno, sempre que necessário, sem perder, entretanto, o contato com o paciente e dando continuidade ao suporte familiar.
Entretanto, assim como o Sistema Único de Saúde já nasceu subfinanciado, os dispositivos previstos na Reforma Psiquiátrica Brasileira, nunca tiveram recursos suficientes. O investimento em Centros de Atenção Psicossocial e nos Residenciais Terapêuticos não atendem à necessidade e vem sofrendo, nos últimos 5 anos, constantes perdas e ameaças de continuidade, desestabilizando equipes e colocando gestores com insegurança administrativa para abertura de novos serviços ou mesmo garantia de provimento de mais profissionais.
No âmbito da Atenção Primária à Saúde, a ESF e especialmente os NASF, que são fundamentais para abordagem das pessoas em sofrimento psíquico e transtornos mentais, sofrem com redução de recursos e, no caso dos NASF, a partir de 2019, deixam de ter financiamento direto do Ministério da Saúde.
Neste sentido, o que observamos é a necessidade de consolidar a Reforma Psiquiátrica com mais investimentos e apoio institucional para implementação adequada dos dispositivos previstos na atual Política de Saúde Mental.
Os transtornos mentais são, talvez, os exemplos mais emblemáticos da multiplicidade de fatores que afetam o processo saúde adoecimento, exigindo um cuidado na sua prevenção, e no atendimento precoce e longitudinal. Assim como em outras formas de adoecimento, os transtornos mentais são atravessados pelas condições de vida, pelos fatores familiares, pelos valores e modo de produção na sociedade, afetando mais os mais vulnerabilizados. Não à toa sofremos um boom na prevalência transtornos mentais no Brasil, pais de vergonhosa iniquidade social. Logo, não é razoável focar os cuidados nos momentos de agudização do quadro, em âmbito hospitalar e medicamentoso, especialmente em internações de longa permanência, e que ignorem a autonomia do usuário (internações involuntárias), tampouco na centralização em uma única profissão e muito menos a uma única especialidade médica. No âmbito do uso abusivo de álcool e outras drogas é temerário que a ação se reduza a abstinência como única meta terapêutica e que os CAPS AD sejam desconsiderados e desfinanciados.
Prezamos pelo cuidado em liberdade embasado na produção científica brasileira e internacional e conquista das lutas pelos Direitos Humanos. É condição necessária a atuação de equipe multiprofissional, em ações intersetoriais, com o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família com equipes de NASF em integração com toda RAPS, buscando a autonomia dos pacientes e usuários, com envolvimento das famílias e sua inserção nas comunidades.
A Diretoria da SBMFC reitera que a qualificação do cuidado em Saúde Mental passa por efetivar, com infraestrutura e recursos financeiros adequados, os dispositivos e serviços presentes na atual Política de Saúde Mental brasileira, coerente com a Reforma Psiquiátrica e com a luta antimanicomial fruto de um amplo e histórico processo democrático que não pode ser secundarizado.
“Nascidas com a redemocratização, a reforma sanitária e a reforma psiquiátrica são parte de um Brasil que escolheu garantir a todos os seus cidadãos o direito à saúde” (1)
Esperamos continuar neste caminho.
SBMFC, 13 de dezembro de 2020
Referências bibliográficas:
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(1) Brasil, Ministério da Saúde. Saúde Mental (Caderno de Atenção Básica no 34). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília, 2013.
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(2) ______. Ministério da Saúde, Biblioteca Virtual em Saúde, Dia Nacional da Luta Antimanicomial; https://bvsms.saude.gov.br/ultimas-noticias/2721-18-5-dia-nacional-da-luta-antimanicomial-2
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(3) ______. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância em Saúde : volume 3 – 1. ed. atual. – Brasília : Ministério da Saúde, 2017.
Posição da Diretoria da SBMFC contrária a retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental