Nota da SBMFC sobre nova política de financiamento da Atenção Primária à Saúde – Programa Previne Brasil

28 de novembro de 2019

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), entidade científica que congrega as médicas e os médicos de família e comunidade no Brasil, vem por meio deste comunicado reafirmar seus princípios estatutários pela defesa do Sistema Único de Saúde, do fortalecimento da Atenção Primária à Saúde e do desenvolvimento da Medicina de Família e Comunidade. É a partir dessas premissas que nos incumbimos de avaliar a nova política de financiamento da Atenção Primária à Saúde, o Programa Previne Brasil, apresentada recentemente pelo Ministério da Saúde.

 

Também se faz necessário, como em qualquer análise de políticas públicas, contextualizar a proposta no cenário macroeconômico atual. Nesse sentido, é preciso considerar que existe um contingenciamento de recursos federais, determinando pela EC-95, de 15 de dezembro de 2016, que pode fazer com que sejam necessários realocar recursos orçamentários para que seja possível concretizar um aumento no aporte financeiro para a Atenção Primária à Saúde. Por outro lado, também é preciso lembrar que é fundamental uma análise criteriosa da proposta, pois mesmo em cenários de crises econômicas é razoável esperar que possam ser apresentadas políticas públicas exitosas. E, de fato, nesses cenários as políticas públicas que promovam aumento da eficiência dos sistemas, melhora na distribuição dos recursos públicos, sem entretanto impor perdas à sociedade, são ainda mais necessárias.

 

O novo modelo de financiamento da APS apresentando pelo Ministério da Saúde é baseado em três eixos distintos: o componente per capita, referente às pessoas cadastradas nas equipes de saúde da família; o componente de pagamento por desempenho, determinado pelo conjunto de condições de relevância epidemiológica com as quais a APS deve se responsabilizar; e o componente de incentivo para ações estratégicas, que aponta para as atividades que precisam ser estimuladas. É importante destacar que tal modelo tem por base o conceito de uma APS integral, em seus atributos essenciais de acesso de primeiro contato, coordenação de cuidados, integralidade e longitudinalidade, bem como seus atributos derivativos, a competência cultural, a abordagem familiar e comunitária. Além disso, a proposta também segue padrões de financiamento da APS adotados em países com sistema de saúde universal e marcadamente baseados na APS.

 

O componente de financiamento per capita é ajustado em função do tamanho e distância do município de um centro urbano e também em função de critérios de vulnerabilidade social, de tal forma que o valor per capita para municípios mais remotos e vulneráveis pode ser até quase três vezes maior do que o valor recebido por grandes municípios. Com a implementação do componente per capita, deixa de existir o repasse pela população total do município, que compunha o PAB fixo. O PAB fixo teve um papel histórico importante no sentido de permitir a expansão da cobertura dos serviços de atenção primária até determinado limite. Entretanto, ela não oferece estímulo para que o município amplie a população efetivamente vinculada aos serviços de APS. Além disso, como o valor pago ao município referente a cada habitante varia muito pouco conforme a tipologia do município, e não há um claro ajuste relacionado a critérios de vulnerabilidade, ele não é capaz de inverter o vetor de concentração de recursos nos municípios de melhor condições socioeconômicas. Análises realizadas pelo Conasems evidenciam que, em comparação com os dados de repasses a municípios no modelo anterior, há efetivamente um aumento relativo e absoluto dos recursos repassados a regiões e municípios mais carentes. Considerando, além disso, a complexidade e a diversidade de bancos de dados utilizados para realizar a ponderação por vulnerabilidade e classificação urbano/rural, entendemos que é fundamental a implementação de pesquisas que monitorem potenciais divergências entre as classificações resultantes dos critérios adotados e a realidade dos cenários assistencial e demográfico dos municípios brasileiros em que urbano-rural e concentração de renda-pobreza estão em constante interseção territorial e social.

 

O cálculo per capita nesse componente do financiamento, baseado no cadastro das pessoas nas equipes de saúde da família, pode se mostrar uma forma de estimular o aumento efetivo da cobertura da APS no país. Além disso, com dados efetivos do cadastro da população, é possível elaborar um melhor diagnóstico da situação de saúde e um melhor planejamento das ações.

 

A presença de um componente por cadastro e um componente por desempenho, como principais critérios de financiamento, está em acordo com recomendações da literatura internacional para o financiamento universal mais custo efetivo da APS. Há uma leitura de que um mínimo componente de pagamento por toda a população dos municípios seria necessário no financiamento, como forma de se custear as ações populacionais e também, de certa forma, resguardar o caráter universal do SUS. Entretanto, o financiamento per capita não desobriga os municípios de realizarem nenhum tipo de ação populacional, bem como não os limita a executar apenas ações individuais. Da mesma forma, o caráter universal do SUS se dá, primeiramente, pelo art 196° da Constituição Federal, não sendo, portanto, violado pelo modelo utilizado para se calcular o montante repassado pela união aos municípios. Além disso, é preciso considerar que existem ainda outros repasses financeiros aos municípios referentes às ações populacionais.

 

É necessária, entretanto, a realização nos próximos meses de monitoramentos e análises pelo próprio Conasems, Ministério da Saúde e instituições autônomas de pesquisa que avaliem tecnicamente o alcance ou não daqueles que devem ser os objetivos principais da nova política de financiamento: aumentar a cobertura por atenção primária pública da população brasileira, aumentar o financiamento da APS no SUS, valorizar o trabalho dos profissionais deste nível do sistema de saúde e melhorar os indicadores nacionais de saúde sensíveis à APS. De forma especial, nos parece faltar na portaria a definição de mecanismos claros para identificação e apoio a municípios que venham a apresentar redução de repasse federal. Certamente será importante um apoio técnico especial do Ministério da Saúde aos municípios que se encontrarem nessa situação.

 

Merece um destaque à parte a questão da residência médica. A SBMFC historicamente defendeu, e segue defendendo, a residência em MFC como meio de garantir formação de qualidade na especialidade e promover a consolidação da APS. A defesa é pela residência médica universal e obrigatória para o exercício da profissão (para os formandos a partir do momento que se alcance a universalização das vagas), por que pelo menos 40% do total vagas no país sejam de MFC e que as vagas nas demais especialidades sejam reguladas conforme necessidade do SUS. Além disso, alcançada a universalização das vagas e a obrigatoriedade da residência médica, também seria importante que todas as especialidades fossem de acesso direto e que a residência médica passasse a ser a única via de formação de especialistas.

 

No entanto, um modelo de formação de especialistas com essas características demanda uma ampla e complexa convergência de diversos atores e instituições da área da saúde e educação. Apontando nesta direção, entendemos que uma via adequada é estabelecer um processo de transição em que, num primeiro momento, se titule um maior número de profissionais como MFC para que, em seguida, havendo um contingente de MFCs já mais próximo do necessário para os serviços de APS, o modelo de formação de especialistas pela via única da residência possa se estabelecer. Nesse sentido, é importante destacar que a SBMFC foi convidada para contribuir na construção do processo de formação que se dará pelo Programa Médicos pelo Brasil e já vem participando de atividades com esse objetivo.

 

Ressalta-se que é importante que, passando-se o processo de transição, a residência se torne a única via de formação de especialistas e que esse momento já esteja adequadamente definido a priori. Além disso, mesmo durante a transição, é necessário buscar o fortalecimento da residência médica, de modo a permitir seu desenvolvimento qualitativo e quantitativo, e possibilitar a transição de modelos.

 

O novo modelo de financiamento prevê, entre as ações elencadas em seu eixo de incentivo para ações estratégicas, que haverá incentivos para municípios com programas de residência médica ou multiprofissional. Entretanto, a portaria 2979, de 12 de novembro de 2019, que institui o Programa Previne Brasil, não traz os elementos suficientes para uma análise adequada. O modelo exato de como se dará esse repasse ainda está a ser regulamentado em portaria própria. De qualquer forma, espera-se que premissas importantes para a qualidade da formação em residência médica, como a preceptoria presencial, estejam previstas em atenção às normativas da Comissão Nacional de Residência Médica.

 

Dessa forma, a SBMFC, em consonância com seus princípios estatutários de defesa do SUS e desenvolvimento da APS e da especialidade, considerando o cenário atual dos serviços de saúde no país, em particular dos serviços de APS, manifesta seu apoio à nova política de financiamento da APS por entender que o potencial de ganhos e avanços com a medida, suplantam os riscos e dificuldades organizacionais que possam eventualmente ocorrer. Além disso, a SBMFC segue à disposição para apoiar tecnicamente a medida, como tem feito historicamente.

 

Diretoria da SBMFC, 28 de novembro de 2019.

 

Referências:

  • Estatuto da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 13 de junho de 2018. Disponível em: http://www.sbmfc.org.br/estatuto/
  • Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019.
  • Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. Novo Modelo de Financiamento de Custeio da Atenção Primária à Saúde. Novembro/2019.