A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) aproveita o 21º. Congresso Mundial de Médicos de Família (WONCA Rio, 2016), que reúne profissionais e experiências de mais de 100 países para posicionar-se, mais uma vez, a respeito do financiamento do sistema de saúde no Brasil.
A SBMFC é uma sociedade científica, tem como papel central o desenvolvimento de uma especialidade médica que deve cuidar com excelência dos problemas clínicos mais prevalentes das pessoas e de uma população. O(a) médico(a) de família e comunidade, no entanto, depende do ambiente em que está inserido para exercer toda a sua potência no sentido de contribuir para que as pessoas, seus pacientes, se sintam melhor, aliviem seus sofrimentos, eventualmente tenham seus problemas resolvidos. O sistema de saúde do qual faz parte e o modo de funcionamento da Atenção Primária (APS) são, portanto, essenciais para definir a nossa prática.
O que as experiências internacionais têm demonstrado, e a Professora Barbara Starfield é uma referência fundamental, é que os países que organizaram sistemas de saúde universais, financiados por impostos gerais, seguros-saúde ou ambos, e fortemente baseados na APS (com médicos de família) são os que conseguem os melhores resultados em saúde com o aproveitamento mais adequado dos recursos financeiros.
Até 1988, o Brasil construía um sistema de saúde semelhante a diversos países do mundo (Alemanha, Holanda, Japão, Estados Unidos da América), em que a base era o seguro-saúde. Os(as) trabalhadores(as) formais dispunham de um seguro financiado pelo seu salário e pelo empregador e regulado pelo Estado, por meio do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS).
Em 1988, o Brasil criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e dessa forma propõe uma universalização do acesso à saúde sem a lógica do seguro-saúde e financiada por impostos gerais, a exemplo da Inglaterra e Espanha. Nesses 28 anos, o SUS cresceu enormemente e permitiu o acesso de milhões de brasileiros que dependiam da caridade para essa assistência. Atualmente, em torno de 3/4 da população brasileira utiliza regularmente as unidades de saúde, as equipes de saúde da família, os ambulatórios especializados e hospitais (públicos ou terceirizados) do SUS. Ao mesmo tempo, mantivemos a lógica dos seguros-saúde com base no trabalho, fortemente apoiada pelos sindicatos de trabalhadores. A maioria das médias e grandes empresas financiam planos de saúde privados, inclusive as empresas, fundações e autarquias públicas (como Banco do Brasil, Petrobrás, Caixa Econômica, FIOCRUZ), as universidades federais e os diferentes poderes da União, Estados e Municípios (Governo Federal, Judiciário, Legislativo, Militares, etc.). Por esse motivo, o mais frequente é que um profissional de saúde do serviço público receba recursos públicos para financiar seu plano de saúde privado.
A contradição do financiamento público dos sistemas de saúde no Brasil ainda prossegue com os gastos tributários (ou as isenções fiscais) do Estado com os milhares de brasileiros que declaram no imposto de renda suas despesas com saúde.
O resumo desse painel é que o Estado brasileiro financia o SUS, de acesso universal e lógica de financiamento solidária, que atende pelo menos 150 milhões de brasileiros e contribui para o financiamento da saúde suplementar por meio de isenções fiscais ou de seus funcionários públicos. Contamos ainda com milhares de brasileiros que desembolsam uma soma vultuosa no financiamento de seus planos de saúde.
O Brasil gasta hoje, portanto, somando todos os recursos em torno de 9.2% do Produto Interno Bruto (PIB), uma proporção semelhante aos países europeus, ainda que o valor nominal possa ser ligeiramente inferior. Em termos comparativos e dentro da riqueza brasileira referenciada pelo seu PIB, deveríamos ter um gasto público o dobro do existente, em vez de 200 bilhões de reais ano passássemos a 400 bilhões. Há, portanto, também uma necessidade de aumento do gasto nominal (per capita) em saúde. Desse ponto de vista, teríamos condições no país para um sistema universal mais adequado para atender todos os 200 milhões de brasileiros. O desafio é que partimos de diferentes subsistemas, que disputam espaço, recursos financeiros e profissionais. Com exceção de um pequeno percentual, que é o desembolso direto para compra de medicamentos, consultas e exames, o Estado regula por meio do Ministério da Saúde para o SUS menos de 50% do total desse gasto, enquanto regula, de algum modo, por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a outra metade.
A Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241) propõe um novo regime fiscal a partir da criação de um limite para o crescimento das despesas primária total do governo central por um período de 20 anos, associado a correção apenas inflacionária, com crescimento real zero. No quesito saúde modifica os dispositivos constitucionais que estabeleciam aplicações mínimas de recursos na saúde ( inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198) e revoga art. 2º da Emenda Constitucional nº 86/2015 que definia um percentual mínimo das receitas correntes líquidas (RCL) para saúde. Valendo agora como regra para compor o orçamento da saúde anual o gasto do exercício anterior acrescido da correção inflacionária definida pelo IPCA ou outra estimativa feita pelo IBGE.
Não é razoável discutir a definição do orçamento em saúde em geral sem considerar qual o desenho de sistema de saúde universal temos como objetivo. Essa discussão, de como chegaremos a um sistema de saúde universal, com forte regulação estatal e regras comuns e equitativas de acesso, deveria preceder o debate sobre financiamento direto para o SUS, assim como o que já tivemos sobre a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), defendida e atacada igualmente por diferentes governos em diferentes momentos.
A SBMFC se posiciona contrária a PEC 241 e a criação de planos populares de saúde e considera que qualquer diminuição no orçamento atual do SUS ou mesmo uma menor progressão do que a que vínhamos tendo nas últimas décadas será muito prejudicial, inclusive com a revogação de mecanismos legais que são conquistas históricas. Essa ameaça, no entanto, tem uma tendência a seguir nesse e em outros governos a medida em que é pouco provável que o país passe dos 10% do PIB em investimento totais em saúde.
Se o desafio momentâneo pode ser a garantia de não haver redução da previsão de orçamento com esse projeto de emenda ou com outros que possam vir (como o que ocorreu com a CPMF), o desafio de longo prazo, a que a SBMFC não quer se furtar, é o de como chegaremos a um sistema de saúde de cobertura universal. Nesse sentido, nos parece mandatório debater todos os subsistemas de saúde brasileiros, seus respectivos aportes financeiros, soluções para a sua integração em um modelo regulado pelo Estado e as diferentes maneiras de se aumentar o gasto nominal em saúde, o que inclui, por exemplo, as renúncias fiscais praticadas atualmente.