Nota oficial pela revogação da Resolução CFM nº 2.378/2024

5 de abril de 2024

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), juntamente com seu Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade (MFC), vem publicamente se posicionar contrariamente à Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.378 publicada recentemente em 03 de abril  de 2024. Essa resolução proibe médicos e médicas de executarem um procedimento, somente nas pessoas vítimas e sobreviventes de estupro, que pode ser parte necessária no cuidado em aborto legal: a assistolia fetal.

Esse procedimento é parte reconhecida como melhores práticas dos cuidados em aborto, com segurança estabelecida e recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Federação Brasileira de Ginecologia e Obstétrica (Febrasgo) e Federação Internacional de Ginecologia e Obstétrica (FIGO) , entre outras reconhecidas sociedades. (1)

Como já reconhecido pelo Ministério da Saúde em referência à indução da assistolia fetal, o Estado, assim como os profissionais de saúde, em particular os médicos, têm dever e responsabilidade em realizar técnicas de acordo com os avanços científicos, que garantam o bem-estar e a saúde das pessoas.(2)

Além da ilegalidade da resolução, por infringir o artigo 128 do Código Penal de 1940 e discriminar sobre os corpos sobreviventes de violência sexual com uma das suas consequências mais devastadoras como uma gestação, também viola os pilares da Ética  Médica violando o próprio Código de Ética Médico (CEM). (3) 

Nos seus princípios fundamentais (Capítulo I), o CFM deixa claro sobre a autonomia médica e que “nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados” e que “o médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública” , bem como compete ao médico “usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente” – aqui destacamos como o aborto é uma questão de saúde pública. Também é vedado às médicas e médicos “usar de sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer outro que não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos no exercício da profissão, particularmente se forem os únicos existentes no local” (Capítulo VII). (3)

Nós, médicas e médicos de família e comunidade, gostaríamos de destacar que as pessoas mais impactadas por essa resolução – que engravidaram em decorrência de estupro – são em sua maioria meninas menores de 14 anos que foram estupradas, na sua maioria, por familiares ou conhecidos (4) as quais têm sua vulnerabilidade ainda intensificada por terem suas gestações identificadas em fase mais avançada. Com a proibição do procedimento de assistolia fetal, essas meninas estarão mais expostas a danos psicológicos, a maior morbidade e também a maior mortalidade. 

Repudiamos que os Conselheiros Federais de Medicina, em sua maioria homens, usem sua posição para se colocar acima das leis do nosso país e de acordos internacionais dos quais  o Brasil é signatário e, principalmente, para assumir que é papel do CFM tentar determinar moralmente o que deve ou não ser prática médica de modo arbitrário, ignorando os consensos científicos vigentes e sem promover qualquer tipo de debate. Essa resolução é um atentado contra a democracia, a saúde, a ciência, a ética e contra os direitos humanos.  Assim, a SBMFC se posiciona publicamente pela revogação urgente e imediata da Resolução CFM nº 2.378/2024.

 

Atenciosamente,

Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)
Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade da SBMFC

(1) Clinical practice handbook for quality abortion care. Geneva: World Health Organization; 2023. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. https://www.who.int/publications/i/item/9789240075207 

FIGO Mifepristone & Misoprostol and Misoprostol Only Dosing Charts 2023.  https://www.figo.org/figo-mifepristone-misoprostol-and-misoprostol-only-dosing-charts-2023 

Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Interrupções da gravidez com fundamento e amparo legais. São Paulo: FEBRASGO, 2021 (Protocolo FEBRASGOGinecologia, n. 69/Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei). https://www.febrasgo.org.br/images/pec/anticoncepcao/n69—O—Interrupes-da-gravidez-com-fundamento-e-amparo-legais.pdf 

Nota Técnica Conjunta 37/2023 da SAPS/SAES do Ministério da Saúde para lista de outras sociedades que recomendam o procedimento. https://static.aosfatos.org/media/cke_uploads/2024/02/29/nota-tecnica-conjunta-no-37_2023-saps_saes_ms-2.pdf 

(2) Nota Técnica Conjunta 37/2023 da SAPS/SAES do Ministério da Saúde. https://static.aosfatos.org/media/cke_uploads/2024/02/29/nota-tecnica-conjunta-no-37_2023-saps_saes_ms-2.pdf 

(3) Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 , modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 / Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. 108 p. https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf 

(4) FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança

Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em:

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf.