Nota de repúdio ao PL 580/07: LGBTIA+fobia adoece e mata!

17 de outubro de 2023

NOTA DE REPÚDIO

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) juntamente com seu Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidades e Direitos vem a público manifestar veemente repúdio à aprovação do Projeto de Lei 580/07 que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo de registro, pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados. Portanto, convocamos médicas e médicos a posicionarem-se contra a retirada de direitos de pessoas LGBTIA+, que tanto degrada a qualidade de vida dessa população quanto a adoece e mata. 

Em 2013, o sistema judiciário autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo de registro, sendo contabilizados 76.430 casamentos até abril de 2023, com  taxa crescente a cada ano. A proposta da criação de outras estratégias para registrar a união civil entre pessoas de mesmo sexo de registro, em oposição ao direito de casar, constitui-se como exclusão e ataque a mais de 10% da população brasileira (SPIZZIRRI, 2022), impedindo a sociedade democrática e igualitária que a constituição brasileira prevê. Portanto, a retirada de direitos dessa parcela da população é considerada, além de desigual e violenta, inconstitucional.

O projeto de lei em questão não pode ser debatido e criticado de forma isolada e deve ser reconhecido como parte de um pacote de ataques às populações minorizadas protagonizado por parlamentares descomprometidos com a diversidade populacional e com direitos humanos – em sua maioria fundamentalistas religiosos de extrema direita. Dentro desse bojo se encontram a tentativa de aprovação do marco temporal, de criminalização do abortamento, de proibição da educação sexual nas escolas, de exclusão da participação de pessoas trans nos esportes, de proibição do porte de maconha, entre outros. A proibição do casamento entre pessoas que tenham o mesmo sexo de registro, ou o mesmo gênero, representa uma afronta aos princípios constitucionais de igualdade e de não discriminação das pessoas LGBTIA+, o que eleva o patamar de adoecimento físico e mental desta população.

Pessoas LGBTIA+ apresentam mais suicídio e autolesão não-suicida, maior risco de desenvolver depressão, ansiedade e dependência de álcool e outras drogas, do que pessoas cisheterossexuais (CAPUTI, 2017; KING, 2008;  LIU, 2019). Diversos estudos apontam discriminação e LGBTIA+fobia como fatores determinantes para estes achados (ALBUQUERQUE, 2017; BOSTWICK, 2014; DIAZ, 2001; HAAS, 2010). Políticas públicas em defesa dos direitos dessa população, em contrapartida, estão associadas à redução destes índices (HATZENBUEHLER, 2009). Uma revisão de escopo que incluiu 59 estudos identificou impactos psicossociais positivos nos âmbitos individual, interpessoal, comunitário e social do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo de registro (DRABBLE, 2021a). Outro estudo transversal avaliou os impactos do reconhecimento do casamento igualitário percebidos por 446 mulheres lésbicas e bissexuais, havendo associação com melhores desfechos em saúde (DRABBLE, 2021b). Hatzenbuehler et al compararam, em estudo com 34653 participantes, a prevalência de transtornos ansiosos, de humor e de dependência ao álcool entre pessoas LGB e pessoas cis-hetero. Nos estados norteamericanos em que o casamento igualitário foi banido, durante 2004 e 2005, foi encontrando um aumento significativo dessas condições entre pessoas LGB, o que não ocorreu nos estados em que não houve essa proibição e não foi encontrado entre pessoas cis-hetero em quaquer estado (HATZENBUEHLER, 2010). 

É lamentável que projetos de lei como este, um contrassenso à saúde e a preceitos constitucionais básicos, sejam ainda debatidos, não só pelos argumentos aqui já expostos, mas também pelo seu endosso à cultura de violência contra a população LGBTIA+ que vem, infelizmente, se fortalecendo nos últimos anos. Sabemos que é no Brasil onde mais acontecem violências contra esta população e que o uso do pânico moral que embasa esses movimentos no nível legislativo apenas contribui para a manutenção dessa posição (Acontece, ANTRA, ABGLT, 2022). Além disso, o pânico moral contra a população LGBTIA+ contribui para a manutenção das violências contra demais segmentos populacionais (mulheres, crianças, idosos), na medida em que impede a identificação das reais causas estruturantes da nossa sociedade para essas violências como misoginia, machismo, racismo. 

O casamento é um direito fundamental e um símbolo de igualdade e justiça para todas as pessoas cidadãs, independentemente de sua orientação sexual. Apesar de seu caráter contratual, monogâmico, que padroniza o núcleo familiar como reprodutor da estrutura social em que vivemos, a união civil reconhecida pelo Estado é capaz de garantir direitos básicos às minorias sociais, como partilha de bens, direitos previdenciários, adoção de crianças e adolescentes, reconhecimentos cartoriais e até mesmo de cadastro e organização burocrática do Sistema Único de Saúde (SUS). Estratégias argumentativas rasas, de cunho religioso e direcionadas a um grupo populacional com o objetivo de gerar pânico moral não devem ganhar força em uma sociedade que preze pela verdade, igualdade e justiça.

Nesse sentido, reiteramos o compromisso com o direito à saúde de todas as pessoas, o que inclui o combate ao estigma e à discriminação em todas as esferas, bem como instamos pelo posicionamento de demais entidades, instituições e profissionais da saúde a somarem-se nessa defesa.

 

Referências

ACONTECE, ARTE E. POLÍTICA LGBTI+. ANTRA (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS); ABGLT (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E INTERSEXOS). Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil: Dossiê 2021. Florianópolis, SC: Acontece, ANTRA, ABGLT, 2022.

ALBUQUERQUE, Grayce Alencar; PARENTE, Jeanderson Soares; DOS SANTOS, Felice Teles Lira. VIOLÊNCIA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE MINORIAS SEXUAIS IMPACTOS NA SAÚDE. Revista saúde. com, v. 13, n. 4, 2017.

Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais. Casamentos homoafetivos crescem quatro vezes em 10 anos de permissão no Brasil. Acesso em outubro de 2023. Disponível em: https://arpenbrasil.org.br/press_releases/casamentos-homoafetivos-crescem-quatro-vezes-em-10-anos-de-permissao-no-brasil/

BOSTWICK, Wendy B. et al. Discrimination and mental health among lesbian, gay, and bisexual adults in the United States. American Journal of Orthopsychiatry, v. 84, n. 1, p. 35, 2014.

CAPUTI, Theodore L.; SMITH, Davey; AYERS, John W. Suicide risk behaviors among sexual minority adolescents in the United States, 2015. Jama, v. 318, n. 23, p. 2349-2351, 2017.

DRABBLE, Laurie A. et al. Perceived psychosocial impacts of legalized same-sex marriage: A scoping review of sexual minority adults’ experiences. PloS one, v. 16, n. 5, p. e0249125, 2021.

DRABBLE, Laurie A. et al. Examining Perceived Effects of Same-Sex Marriage Legalization Among Sexual Minority Women: Identifying Demographic Differences and Factors Related to Alcohol Use Disorder, Depression, and Self-Perceived Health. Sexuality Research and Social Policy, p. 1-15, 2021.

DIAZ, Rafael M. et al. The impact of homophobia, poverty, and racism on the mental health of gay and bisexual Latino men: findings from 3 US cities. American journal of public health, v. 91, n. 6, p. 927, 2001.

HAAS, Ann P. et al. Suicide and suicide risk in lesbian, gay, bisexual, and transgender populations: Review and recommendations. Journal of homosexuality, v. 58, n. 1, p. 10-51, 2010.

HATZENBUEHLER, Mark L.; KEYES, Katherine M.; HASIN, Deborah S. State-level policies and psychiatric morbidity in lesbian, gay, and bisexual populations. American journal of public health, v. 99, n. 12, p. 2275-2281, 2009.

HATZENBUEHLER, Mark L. et al. The impact of institutional discrimination on psychiatric disorders in lesbian, gay, and bisexual populations: A prospective study. American journal of public health, v. 100, n. 3, p. 452-459, 2010.

KING, Michael et al. A systematic review of mental disorder, suicide, and deliberate self harm in lesbian, gay and bisexual people. BMC psychiatry, v. 8, p. 1-17, 2008.

LIU, Richard T. et al. Prevalence and correlates of non-suicidal self-injury among lesbian, gay, bisexual, and transgender individuals: A systematic review and meta-analysis. Clinical psychology review, v. 74, p. 101783, 2019.

SPIZZIRRI, Giancarlo et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians, sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Scientific reports, v. 12, n. 1, p. 11176, 2022.