NOTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE A RESPEITO DO DESPACHO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE QUE ORIENTA A ABOLIÇÃO DO TERMO VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA EM DOCUMENTOS OFICIAIS DO ÓRGÃO

7 de maio de 2019

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) vem por meio desta nota posicionar-se contrariamente ao despacho emitido pelo Ministério da Saúde, em 03 de maio de 20191 , em que o órgão afirma que “a expressão ‘violência obstétrica’ não agrega valor e, portanto, estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso”, e compromete-se a não utilizá-lo em suas normativas.

Violência obstétrica é um termo relativamente novo, que, no entanto, tem sido utilizado para nomear uma problemática antiga e se refere ao tratamento desrespeitoso e abusivo que as mulheres podem sofrer por profissionais de saúde durante a gravidez, o parto e o período pós-parto e é utilizada para descrever e agrupar diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico (2) tendo entre outros, componentes sócio culturais, institucionais, econômicos e profissionais envolvidos.

Nesse contexto, a América Latina é um cenário em que o debate sobre a qualidade da assistência obstétrica e o papel dos maus-tratos às mulheres (3) durante o parto é caloroso uma vez que mortalidade materna e infantil tem se configurado um desafio de saúde pública e extensivas denúncias de mulheres ganham voz e protagonismo a despeito das propostas de melhoria e investimentos dos órgãos públicos. No Brasil diferentes formas de violência obstétrica vêm sendo registradas por pesquisas amplas, cujos resultados são preocupantes: 25% das mulheres relataram ter sofrido maus tratos durante o parto e apenas 5% tiveram partos sem nenhuma intervenção (4,5) .

Em 1985, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou o documento Tecnologias apropriadas para o parto e nascimento (6), uma classificação das práticas de atenção ao parto e ao nascimento. As recomendações da OMS para o uso de tecnologias apropriadas no nascimento foram desenvolvidas inicialmente em países europeus, Canadá, Estados Unidos, Austrália e China através de pesquisa, discussões e debates, e são fortemente endossadas pelas descobertas de ensaios clínicos randomizados controlados e avaliados criticamente.

Essas recomendações foram revistas em 1989 (7) , reforçando a classificação das tecnologias em aquelas que reduzem os resultados negativos na gravidez e no parto; aquelas promissoras, mas que requerem avaliação adicional; as práticas com efeitos desconhecidos com necessidade de avaliação adicional e as práticas que deveriam ser abandonadas à luz da evidência disponível.

Entre as más práticas estão: não envolver as mulheres nas decisões sobre seus cuidados; episiotomia rotineiras para o parto; administração rotineira de enemas ou supositórios e tricotomia; posição materna restrita durante o trabalho de parto, prescrição de sedativos ou tranquilizantes, repetição de cesariana rotineiramente após cesárea anterior, além do negligenciamento dos direitos das mulheres por conta de más condições estruturais dos serviços de saúde, como deixar as mulheres desacompanhadas durante o trabalho de parto e separar rotineiramente mães e bebês saudáveis.

Nos países Latino Americanos, o movimento de sensibilização para situações de violência obstétrica cresceu em torno da iniciativa do Centro Latino-Americano de Perinatologia, Saúde das mulheres e Saúde reprodutiva da Organização Pan-Americana da Saúde (CLAP/WH-OPAS). O direito de poder ser acompanhada por uma pessoa de sua escolha na hora do parto foi a primeira, de várias medidas de boas práticas de assistência ao parto e nascimento, que evoluíram para a institucionalização de leis em alguns países (8) , como a Lei de proteção integral às mulheres na Argentina.

Realizadas por universidades, agências governamentais e organizações nãogovernamentais as primeiras publicações científicas utilizando o termo “violência obstétrica” surgiram nas décadas passadas (9), (10), e documentaram a frequência do desrespeito e abusos sofridos das mulheres pelos profissionais da saúde. Percebe-se que se trata de um termo reconhecido no cenário internacional dentro e fora da comunidade acadêmica, e que cumpre a função de unificar o que antes era designado por múltiplas expressões (2) . 

As adolescentes, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível socioeconômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV são particularmente propensas a experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos11. No Brasil, chamam atenção particularmente os dados de violência obstétrica sofridas por mulheres negras em relação a oferta de analgesia: mesmo após controle para variáveis sociodemográficas, os dados indicam um menor uso de analgesia nas mulheres pretas (12) e alguns estudos também evidenciaram uma menor oferta de procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, com menores proporções ainda para as de menor escolaridade (13). 

Pelo exposto, a SBMFC como representante da especialidade médica que integra o cuidado das mulheres em todas as suas fases do ciclo de vida, incluindo pré-natal e o atendimento dos recém-nascidos e suas famílias no período puerperal, vem expressar sua preocupação como a supressão do termo “violência obstétrica” nos documentos oficiais do Ministério da Saúde. 

Entendemos que nomear a Violência sofrida por essas mulheres é um dos passos fundamentais para dar visibilidade a este cenário grave que em nosso país estima-se afetar aproximadamente 25% das mulheres que passam por partos vaginais em serviços de saúde públicos ou privados e 53% daquelas que provocaram o aborto durante a internação hospitalar (4,5). 

Reconhecemos que durante o pré-natal realizado na Atenção Primária à Saúde, Médicas e Médicos de Família e Comunidade podem ser reprodutores da Violência Obstétrica institucionalizada e justamente por isso, acreditamos no nosso papel para colaborar com a erradicação da mesma.

Médicas e Médicos de Família e Comunidade podem atuar na construção de redes de saúde em que mulheres e suas famílias tenham acesso amplo ao conhecimento sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, sob as condições ideais que devem ser assistidas durante parto e puerpério e já há propostas na própria especialidade sobre o papel que esses especialistas podem ter nesse processo, principalmente em relação ao incentivo à produção de planos de partos, grupos de gestantes e puérperas e do trabalho em equipe com outras profissões de saúde, como Obstetrizes e Enfermeiras Obstétricas (2), (14), (15), (16). 

Não obstante, a SBMFC e o Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres da Medicina de Família e Comunidade (MFC) também compreendem a preocupação decorrente do eventual mau uso do termo, e para o fato de que não se deve generalizar como violência obstétrica a realização de determinados procedimentos médicos sem que haja um entendimento individualizado do contexto em que tais procedimentos ocorreram, principalmente por parte dos legisladores.

Defendemos que os sistemas de saúde são responsáveis pela maneira com que as mulheres são tratadas durante o pré-natal, parto e puerpério e que devem ser desenvolvidas e implementadas políticas institucionais e mecanismos de acompanhamento claros sobre direitos e normas éticas, contudo, más práticas profissionais no parto e nascimento representam quebra do vínculo entre as mulheres e suas equipes de saúde. A desresponsabilização profissional colocando toda a carga na instituição pode ser também um poderoso desestímulo para as mulheres não procurarem e usarem os serviços de assistência em saúde e o risco de um uso inadequado do termo nos remete à necessidade de aprimoramento em sua conceitualização, e não de abolição do seu uso.

Negar a forma como as pessoas que vivem o problema o definem – ou seja, como experimentam e vivenciam seu sofrimento – pode retardar sua resolução, dificultar o encontro do terreno comum e gerar maior sofrimento indo contra dois importantes pilares da MFC que são o Método Clínico Centrado na Pessoa e a utilização de Medicina Baseada em Evidências.

A Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade comprometida com uma prática centrada na pessoa e entende a relação médico-pessoa como fundamental para a obtenção de desfechos favoráveis no cuidado à saúde, nesse campo, ainda sendo necessários amplo esforço de desenvolvimento de pesquisa e produção intelectual de forma livre, sem cerceamento da livre expressão de docentes, pesquisadores e profissionais de saúde no diálogo com a sociedade civil organizada.

A SBMFC e seu GT Mulheres na MFC ressaltam ainda que a atuação para a erradicação da violência obstétrica deve ser incansável e encontra-se em consonância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que preconizam “eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas”. 

Para isso, é fundamental que o Ministério da Saúde se coloque como mediador e ator do debate necessário e urgente entre as instituições públicas que representam os médicos e as mulheres, incluindo o debate com os poderes Legislativos e Judiciário, esse último que através de diversos entes, como as Defensorias Públicas e Ministérios Públicos de diversos Estados vem ao longo do processo de judicialização da questão, enfrentando a necessidade de regulamentação, definição de termos e inovando nas soluções legislativas incluindo as mulheres e suas entidades em audiências públicas. 

Defendemos que é preciso continuar falando a respeito da violência obstétrica, e nos colocamos disponíveis para qualificar a discussão na comunidade científica e dialogar com a sociedade civil, pois a prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maustratos durante o pré-natal, parto e puerpérios em instituições de saúde são necessidades urgentes no contexto brasileiro para garantir o acesso universal aos cuidados em saúde sexual e reprodutiva de forma segura, aceitável e de boa qualidade, reduzindo assim as taxas de morbidade e mortalidade materna. Rio de Janeiro, 07 de maio de 2019. Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade da SBMFC. 

Referências:

1. BRASIL, Ministério da Saúde. DESPACHO DAPES/SAS/MS de 03 de maio de 2019. Brasília, 2019. Disponível em: https://sei.saude.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=90876 21&codigo_crc=1A6F34C4&hash_download=3a1a0ad9a9529cf66ec09da0eaa100f43e3a71dadcb400a0033aea de6e480607ee223e8f2fb1395ed3ce25c6062032968378cd9f7a37a4dc6dfb5a3aa708709d&visualizacao=1&id_ orgao_acesso_externo=0&fbclid=IwAR0MVIM1dG4AYoJsGSzRIxt3z4Ctc7qN4ONWK72OsC1XcvMTkUeAEH_K00

2. Tesser C, Knobel R, Andrezzo H, Diniz S. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade [Internet]. 2015 Jun 24; [Citado em 2019 Mai 6]; 10(35): 1-12. Disponível em: https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1013.

3. Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG An Int J Obstet Gynaecol. 2018;125(10):1208–11. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1186%2Fs12978-018-0643-z. 

4. Viellas EF, Domingues RMS, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV et al . Assistência pré-natal no Brasil. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2014 ; 30( Suppl 1 ): S85-S100. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2014001300016&lng=en.

5. Venturi G; Godinho T, editors. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado: Uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: SESC-SP; 2013. Disponível em: https://apublica.org/wpcontent/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf

6. World Health Organization – WHO. Appropriate Technology for Birth, Lancet [Internet]. 1985;2(8452):436-7. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2863457. 

7. Chalmers B. WHO appropriate technology for birth revisited. BJOG An Int J Obstet Gynaecol. 1992;99(9):709– 10. Disponível em: https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1471-0528.1992.tb13867.x

8. Argentina. Lei 26.485. Ley de Protección Integral para Prevenir, Sancionar, y Erradicar la Violencia Contra las Mujeres en los Ámbitos en que Desarrollen sus Relaciones Interpersonales. 01 de abril de 2009. Disponível em: http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/sites/default/files/sipi_normativa/ley_de_proteccion_integral_a_la_m ujer_-_argentina.pdf.

9. Jardim DMB, Modena CM. Obstetric violence in the daily routine of care and its characteristics. Rev. LatinoAm. Enfermagem [Internet]. 2018; 26: e3069. Disponível em:: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692018000100613&lng=en. Epub Nov 29, 2018. http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2450.3069.

10. Pérez D’Gregorio R. Obstetric violence: a new legal term introduced in Venezuela. Int J Gynaecol Obstet. [Internet]. 2010 Dec;111(3):201-2. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1016/j.ijgo.2010.09.002/pd

11. Bowser D, Hill K. Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in Facility-based Childbirth: report of a landscape analysis. USAID / TRAction Project; 2010. Disponível em: https://www.ghdonline.org/uploads/Respectful_Care_at_Birth_9-20-101_Final1.pdf

12. Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2017 ; 33( Suppl 1): e00078816. Disponível em:: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017001305004&lng=en. Epub July 24, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00078816.

13. Leal MC, Pereira APE, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M et al . Obstetric interventions during labor and childbirth in Brazilian low-risk women. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2014; 30(Suppl 1): S17-S32. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 311X2014001300005&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00151513.

14. Norman A, Tesser C. Obstetrizes e enfermeiras obstetras no Sistema Único de Saúde e na Atenção Primária à Saúde: por uma incorporação sistêmica e progressiva. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade [Internet]. 2015 Mar 31; [Citado em 2019 Mai 6]; 10(34): 1-7. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1106

15. Brawers E, Giuliani C, Collares MF. Decisão compartilhada: o caso do plano de parto. In: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade: Ciclo 13. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2019. p. 71-112 (Sistema de Educação Continuada a Distância, v.4)

16. Andrezzo HFA, Poli Neto P. Enfrentamento da epidemia de cesarianas no Brasil. In: Sociedade Brasileira Medicina de Família e Comunidade: Augusto, DK, Umpierre, RN, organizadores. Ciclo 10. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2015. p. 103-24 (Sistema de Educação Continuada a Distância, v.2). 

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