Mulheres idosas

9 de dezembro de 2020

Texto número 20 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs. 

Isaura, uma mulher de 67 anos, veio à consulta em busca de nova receita dos remédios para dormir. Seu médico viajou e ela chegou até mim com uma demanda aparentemente simples e pontual.

Aparentemente.

Viúva e morando com seu único filho (“ele mora comigo, na verdade”), vive da pensão do falecido marido, mas quem cuida do dinheiro é o filho. “Ele prefere assim, diz que já estou velha e posso fazer besteira.” O filho se mudou há três anos, quando perdeu o emprego.  

Conversando, ela me conta que há dois anos teve depressão, mas ficou boa com o tratamento, e que os remédios pra dormir (benzodiazepínicos, mal indicados), já toma há muitos anos, desde quando era casada. “Tenho problema de nervos”, me diz.

Sem fazer relação com o quadro depressivo, refere que um pouco depois de se mudar pra casa dela, o filho começou a beber e foi ficando agressivo. “Muitos problemas, coitado. Aí ficou nervoso, igual ao pai. Às vezes grita, às vezes quebra uma coisa. Diz que dou muito trabalho.”

 

A história de Isaura é a história de muitas mulheres.

 

Numa sociedade em que tanto o gênero feminino quanto a velhice são menosprezados, as idosas estão duplamente vulneráveis à violência.

Não ser escutada e bem cuidada pelas instituições e profissionais da Saúde é violência institucional.

Ser privada da administração de seus bens e renda é violência patrimonial.

Ser agredida com xingamentos e comentários depreciativos é violência psicológica.

E muitas ainda sofrem negligência (por recusa ou omissão de cuidados), violência física (como beliscões, empurrões, tapas ou abusos que não deixam sinais físicos) e ou sexual (abusos que visam obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas através de coação ou ameaças).

As mais afetadas são viúvas ou divorciadas, têm entre 60 e 69 anos, os agressores são majoritariamente os filhos e a subnotificação é uma realidade, devido às mulheres não quererem expor os familiares. As que já sofriam violência do marido estão também mais susceptíveis a sofrer violência na velhice.

 

Se a função social da mulher é a de “gerar varões”, na velhice, após a menopausa, ela já não tem nenhuma serventia. Apesar de chocante, esse pensamento ainda é muito presente na dimensão simbólico-relacional que vivemos, expressando-se inclusive nas histerectomias mal indicadas e no preconceito com a mulher velha, que poderia, com sua experiência e liberdade dos cuidados familiares, ter muito prazer nessa fase da vida.

 

Romper com um sistema tão familiar quanto complexo não é tarefa simples nem pontual. Começa com a sensibilidade da(o) profissional, que ao escutar a realidade, pode se tornar uma aliada na jornada dessa mulher em perceber o que vive e como pode ser diferente. Com o apoio, claro, do respaldo legal e das políticas de saúde. 

 

Lia Haikal

ID Lattes: 0594587123590730

@casaluacheia

 

Referências:

 

  1. BRASIL, Lei nº 1074/2003. Estatuto do Idoso. Brasília: DF, Outubro de 2003.
  2. BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
  3. Antequera Isabela Granado, Lopes Maria Carolina Barbosa Teixeira, Batista Ruth Ester Assayag, Campanharo Cassia Regina Vancini, Costa Paula Cristina Pereira da, Okuno Meiry Fernanda Pinto. Rastreamento de violência contra pessoas idosas: associação com estresse percebido e sintomas depressivos em idosos hospitalizados. Esc. Anna Nery  [Internet]. 2021  [cited  2020  Nov  10] ;  25( 2 ): e20200167. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452021000200205&lng=en.  Epub Nov 06, 2020.  https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0167.