Gestores avaliam como estamos e quais os desafios e alternativas para chegar a um melhor nível de assistência à população
Por Daniella Pina
Em meio às diversas transformações políticas e econômicas vividas no País, o Ministério da Saúde divulgou recentemente a formação de um Grupo de Trabalho para discutir a criação de planos de saúde populares – mais baratos e com cobertura reduzida. A proposta, polêmica, foi criticada por diversas entidades de classe.
Na opinião da presidente da Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar (CIMF), Maria Inez Padula, a política pode ser considerada um desastre em termos de valores éticos e de competência em gestão de saúde. “Em um dos países mais desiguais do mundo, como o Brasil, ela desresponsabiliza o Estado e transforma a saúde em um negócio, regido pelas leis de mercado: planos de elite para quem pode pagar e planos populares para quem não pode. Isso vai contra toda e qualquer política digna e pautada na equidade – mola-mestra da Cobertura Universal da Saúda da OMS.”
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Thiago Trindade, o assunto deve ser discutido de forma propositiva. “Queremos estimular o debate, ouvir gestores de áreas diferentes e refletir sobre o que funciona e como entendemos o sistema de saúde”. Em sua opinião, o mais importante é destacar que a forma como isso foi apresentado, como uma solução para aumentar o acesso, diminuir a busca pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e ao mesmo tempo desonerar a demanda pelos recursos do SUS, é uma interpretação errada. O problema da proposta é que, embora os planos populares possam cobrir consultas médicas e exames básicos, o cuidado integral e os aspectos mais custosos continuarão no sistema público. Isso inclui procedimentos como transplantes, hemodiálises e tratamentos de câncer, entre outros.
“Acredito que nossa estrutura precise de mais financiamentos e, pelo menos, o dobro dos recursos disponíveis atualmente em âmbitos municipal, estadual e federal. Hoje, os planos de saúde já tiram recursos do SUS, uma vez que que a isenção fiscal de quem os utiliza poderia entrar como recurso do sistema. Do ponto de vista do cuidado integral, o sistema público tem demonstrado resultados muito mais favoráveis que os planos existentes, então o que esperar dos planos populares?”, indaga o presidente da SBMFC.
O ponto de vista é o mesmo do secretário de Saúde de Florianópolis (SC), Carlos Daniel Moutinho Jr. “Além de possibilitar a oferta de serviços de baixa qualidade e pouca efetividade – já que não terão ordenamento centrado na lógica da atenção primária (longitudinalidade, coordenação, primeiro contato e integralidade) -, os planos populares irão, certamente, aumentar o gasto no SUS, já que esse atendimento pode gerar mais encaminhamentos à média e alta complexidades, com exames e consultas que serão cobertos apenas pelo sistema público.”
Apesar das deficiências já conhecidas, o SUS tem hoje um modelo de atenção primária forte, que serve como porta de entrada do usuário no sistema, por meio da Estratégia Saúde da Família. Em todo o País, 40 mil equipes de APS cobrem 75% da população. “Temos de potencializar esse modelo para fortalecer a prestação de serviço da APS prioritariamente, mas também os gargalos que hoje existem no SUS”, argumenta Trindade. Para isso, são necessários uma gestão mais efetiva e o fortalecimento do modelo, para que os pacientes sejam assistidos a partir da APS e não direcionados apenas para os hospitais.
A organização do sistema de forma hospitalocêntrica na maioria das cidades do País resulta em baixa efetividade, altos custos com poucos resultados e inequidade. Para Moutinho Jr., esse é um dos principais problemas dos modelos de saúde atuais. O secretário de Saúde de Florianópolis cita ainda o subfinanciamento público, os problemas relacionados à escolha de gestores técnicos – muitas vezes sem formação e experiência para administrar a saúde pública – e a elevada carga de judicialização. “Cada vez mais, estados e municípios são forçados a entregar medicamentos e insumos por via judicial; muitas vezes, fora da tabela SUS ou sem qualquer tipo de comprovação científica”, diz. Esses gastos, segundo ele, geralmente suplantam grandes investimentos para o coletivo.
Reforma da saúde suplementar
Poucos planos de saúde do País têm hoje o médico de família e comunidade como porta de entrada no sistema. Na opinião do presidente da SBMFC, o que se observa é uma gestão desorganizada, em que o paciente vai a vários médicos ao mesmo tempo, sem haver coordenação do cuidado. “Ao mesmo tempo em que temos de focar o fortalecimento do SUS, é necessário que o próprio sistema de saúde suplementar seja qualificado para um seguro integral, com um médico de família e comunidade como primeiro acesso desse plano”, diz. Responsável pela cobertura de 25% de saúde da população em termos de prestação de serviços, a saúde suplementar deve melhorar dentro daquilo que já existe, na opinião de Trindade.
Um desses exemplos é a Unimed do Brasil. Em 2011, o sistema de assistência médica instituiu o Comitê de Atenção Integral à Saúde (CAS), com o objetivo de incentivar e auxiliar as operadoras da rede na implantação de um modelo com base na atenção primária, integrando prevenção, vigilância, prestação de assistência e reabilitação. De acordo com a coordenadora do Núcleo de Atenção à Saúde, Silvia Esposito, a Unimed do Brasil defende uma ampla reforma no modelo de atenção do Sistema Unimed e do sistema de saúde como um todo. “Desde a implantação do novo modelo, já foi possível identificar melhora no acompanhamento da rotina de saúde de mais de 150 mil pacientes participantes de programas de APS adotados em mais de 30 Unimeds nos últimos anos.”
Entre os resultados alcançados, Silvia afirma que houve mais valorização da prática médica especializada e melhor integração entre as especialidades. “As operadoras do Sistema Unimed podem contar com novas oportunidades de atuação para melhoria da remuneração do trabalho médico, por exemplo.” A partir da atenção integral à saúde, a proporção de consultas em pronto-socorro caiu de 34% para 19% em um ano, adequando-se ao teto de 20% preconizado pela agência reguladora. O exemplo é da Unimed BH, onde a proporção de consultas eletivas da APS cresceu de 26% para 67%. Também é relevante a redução da parcela de internações desencadeadas por condições sensíveis à atenção primária. No grupo avaliado na mesma unidade, a redução foi de 14% para 9%.
Outro exemplo exitoso é o da Unimed Guarulhos – primeira a adotar o programa de atenção primária, a partir de 2012, com um grupo de quatro mil pacientes. Além de um índice de satisfação dos clientes de 87%, houve redução de 57% no custo per capita em pronto-socorro com os pacientes acompanhados pelo programa Cuidado Perfeito, direcionado a pacientes diabéticos.
Soluções possíveis
Existem alternativas para solucionar os problemas relacionados aos modelos atuais de saúde. O presidente da SBMFC defende que a saúde suplementar seja qualificada pela estruturação de um modelo também baseado na APS. A solução, segundo ele, traria mais eficiência ao sistema, com grande redução no número de hospitalizações e complicações relacionadas às doenças crônicas. “As duas formas mais clássicas de melhoria dos sistemas público e privado são por meio da ampliação do financiamento do SUS, com o fortalecimento do modelo de APS e da saúde suplementar, que já tem um financiamento relativamente adequado, mas precisa ser reformulado do ponto de vista assistencial, para uma orientação à atenção primária.”
Evidências mostram que a APS de qualidade resolve pelo menos 85% dos problemas de saúde de uma população referenciada. “Qualquer gestor de saúde competente sabe que para ter um sistema de saúde custo-efetivo, resolutivo e eficaz é preciso investir de forma adequada, persistente e longitudinal na qualificação da Atenção Primária à Saúde, com médicos de família e comunidade”, diz a presidente da CIMF.
Para o secretário de Saúde de Florianópolis, é fundamental aumentar significativamente o financiamento público, especialmente em âmbitos federal e estadual, a fim de pelo menos dobrar o investimento per capita brasileiro. “Além disso, são necessárias regras de planejamento baseadas em indicadores claros de custo-efetividade, com forte indução do modelo centrado na atenção primária em saúde”, conclui.