Este é o segundo texto de uma série de mitos sobre a saúde da população de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo, assexuais e demais pessoas com variabilidade de gênero ou de orientação sexual (LGBTIA+).
O primeiro sobre LGBTIA+fobia institucional está disponível no link.
A atividade produzida pelo Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC desmistifica pensamentos e ideias que são comuns na prática clínica.
O conteúdo desta página aborda mitos sobre pessoas Intersexo e foi desenvolvido por Ana Paula Andreotti Amorim, médica de família e comunidade, membro do GT.
Mitos sobre saúde de pessoas intersexo
Mito 1: Intersexualidade é uma condição muito rara
Resposta: Pessoas intersexo são aquelas que nascem com alguma variação natural nas características do corpo que são atribuídas a sexo (genitálias, gônadas, cromossomos e resposta hormonal) de forma a não serem contempladas pelas concepções binárias que são típicas sobre como deve ser o corpo de um ser macho ou fêmea. O reconhecimento da intersexualidade pode acontecer logo ao nascimento (muitas vezes, com a percepção de uma genitália atípica), mas essa variações podem ser percebidas somente ao momento da puberdade, como achado ocasional de exames ou podem nunca ser conhecidas. Pode ocorrer isoladamente, ou em associação com síndromes e conhecidas.(1)
Existem, no mundo, tantas pessoas com traços intersexos quanto existem pessoas ruivas: 1,7% da população. Porém, as pesquisas que demonstram essa prevalência podem mostrar números subestimados, pois muitas dificuldades levam a um baixo reconhecimento da condição intersexual: a intersexualidade pode não ser percebida, profissionais de saúde podem não notificar ao nascimento, a pessoa pode não ter sido informada pela família de sua intersexualidade (muitas vezes por orientação inadequada de profissionais de saúde), pode haver vergonha e medo de preconceitos em assumir-se intersexo, etc.(2)
Mito 2: Pessoas intersexo são hermafroditas
Resposta: A intersexualidade é um termo “guarda-chuva” que abrange diversas condições. Somente uma pequena fração se enquadra no que antigamente nomeava-se “hermafroditismo”, ou “pseudo-hermafroditismo”. Ainda assim, o termo deve ser evitado, por ser estigmatizador e incorreto (pois seres mamíferos não são constitucionalmente hermafroditas).(3)
O termo “Diferenças de Desenvolvimento do Sexo” tem sido preferido, mesmo ao invés de “Distúrbio de Desenvolvimento Sexual” (ou “Disfunções de Desenvolvimento Sexual”, ou “Doenças do Desenvolvimento Sexual”), (4) pois considera somente o desenvolvimento genital mais frequente como normal é estigmatizante e patologizante.(1)
Mito 3: As intervenções cirúrgicas são sempre benéficas para a população Intersexo
Resposta: A intersexualidade não deve ser entendida como uma condição de agravo à saúde por si só, pois a maioria das pessoas intersexo é saudável e somente uma porcentagem muito pequena tem necessidade de intervenções cirúrgicas ao longo da vida (5). Alterar os corpos de pessoas intersexo com o objetivo de “normalizá-las” desrespeita direitos humanos fundamentais: direito à integridade física, a estar livre de torturas e de tratamentos patologizantes, à igualdade, à não-discriminação e à autonomia.(1)
A proposta de transformar a genitália de uma criança para que ela tenha uma aparência típica e, assim, ela seja socializada com um dos dois gêneros socialmente aceitos (mulher ou homem) gera muito mais sofrimento do que conforto às pessoas intersexo (4). Essa concepção baseia-se na perspectiva de que pessoas que não contemplem o padrão social esperado para um desses gêneros, ou com corpos que não sejam comuns, não podem ser integradas à sociedade sem que suas características sejam apagadas, transformando a intersexualidade em motivo de vergonha e de exclusão.
Mito 4: É melhor que crianças intersexo sejam operadas logo ao nascer e que nunca saibam de sua intersexualidade
Resposta: Os procedimentos realizados em crianças obviamente não consideram a autonomia delas ao seu corpo e, muitas vezes, nem mesmo a família sente-se bem esclarecida quanto à real necessidade de realizá-los e de outras opções. As sequelas corporais permanentes que costumam ser geradas (infertilidade, dores, incontinência urinária, perda de prazer e sensibilidade sexual cicatrizes) precisam ser consideradas juntamente aos sofrimentos mentais, muitas vezes vinculados a sentimentos de vergonha e necessidade de sigilo, que permanecem ao longo da vida e aumentam transtornos depressivos e ideação suicida (2). Embora a legislação brasileira ainda não tenha avançado muito nos direitos de pessoas intersexo, movimentos de direitos humanos ao redor de todo o mundo defendem que cirurgias e demais tratamentos desnecessários e não solicitados devam ser proibidos (1).
A abordagem sobre intersexualidade deve começar ainda durante o pré-natal (pois é função de profissionais de saúde abordar expectativas das famílias em relação à criança, inclusive em relação aos papéis de gênero), o que inclui os direitos da pessoa parturiente e da criança. Quando a intersexualidade já é esperada, cabe planejar o momento do parto e pós-parto e as possíveis abordagens da equipe hospitalar. É importante orientar que traços ou características intersexo não são necessariamente más-formações e que todas as intervenções cirúrgicas não urgentes devem ser adiadas, inclusive gonadectomias justificáveis pelo risco de desenvolvimento tumoral maligno.
O registro de nascimento é um direito de todas as pessoas e as pessoas intersexo não podem ser privadas desse direito. Na Declaração de Nascido Vivo (DNV), o campo “sexo” deve ser preenchido com a opção “ignorado” e os serviços de saúde não podem condicionar a sua entrega uma determinação binária do “sexo”. Portanto, quaisquer investigações anatômicas, procedimentos de alteração genital ou suplementações hormonais não definem o preenchimento da DNV e as famílias devem ser informadas disso, pois a ausência de registro gera muita angústia e sofrimento a elas. A Certidão de Nascimento emitida pode ser acrescentada da informação sobre sexo posteriormente, quando a família e a equipe transdisciplinar tiver concluído sua compreensão sobre o sexo/gênero da criança. (4)
Mito 5. Pessoas intersexo serão, necessariamente, pessoas não binárias
Resposta: Designar um gênero a uma pessoa ao seu nascimento não garante que ela se reconhecerá com esse gênero ao longo da sua vida. Portanto pessoas que nasceram com traços intersexo e tenham sido socializadas com qualquer gênero também podem ser pessoas transexuais, travestis ou com demais variabilidades de gênero.(6)
Embora uma das justificativas para alterações corporais precoces nas características corporais atribuídas ao sexo seja fazer com que as pessoas intersexo sintam-se melhor com seu próprio gênero, a realidade não condiz com essa lógica. Muitas pessoas intersexo submetidas a intervenções cirúrgicas na infância sentem que foram forçadas a adotar um gênero que não as contempla, em porcentagem muito maior do que pessoas diáticas (que não são intersexo).(3)
Referências:
(1) United Nations Human Rights. Intersex [Internet]. New York: UNFE; c2018 . Disponível em: https://unfe.org/system/unfe-65-Intersex_Factsheet_ENGLISH.pdf
(2) Jones T, Hart B, Carpenter M, Ansara G, Leonard W, Lucke J. Intersex: Stories and Statistics from Australia. Cambridge, UK: Open Book Publishers, 2016. http://dx.doi.org/10.11647/OBP.0089 ISBN Digital (PDF): 978-1-78374-210-3
(3) Hughes IA, Houk C, Ahmed SF, Lee PA. Consensus Group. Consensus statement on management of intersex disorders. Arch Dis Child: first published as 10.1136/adc.2006.098319 on 19 April 2006. Downloaded from http://adc.bmj.com/ on May 21, 2020 at USP – Universidade de Sao Paulo. Protected by copyright
(4) Silva MRD. Repensando os cuidados de saúde para a pessoa intersexo. In: Dias MB. Intersexo. Revista dos Tribunais; Edição: 1ª (23 de outubro de 2018) ISBN-10: 855321205X ISBN-13: 978-8553212057
(5) European Union Agency for Fundamental Rights – FRA. The fundamental rights situations of intersex people. Vienna: 2015 . TK-04-16-441-EN-C (print); TK-04-16-441-EN-N (PDF)
(6) Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM. Sexualidade e diversidade. Tratado de Medicina de Família e Comunidade, Capítulo 79, 2ª edição, Porto Alegre, Artmed, 2019