Enquanto o noticiário nacional repercutia a retomada do julgamento por parte do Superior Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, o 17º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade (CBMFC) promovia, na tarde de quinta-feira (21), a mesa redonda “Aborto legal na APS: Como? Quando? Onde? E por quê?”.
A atividade foi organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade (GTMFC) da SBMFC e conduzido por Bruna Ballarotti, uma das coordenadoras do grupo entre 2019 e 2023.
O debate de alto nível contou com Rebeca Mendes, uma advogada brasileira que precisou ir à Colômbia para realizar um aborto seguro e hoje coordena o projeto Vivas, cujo objetivo é ajudar mulheres a não viver o que ela viveu.
A médica e pesquisadora do Anis – Instituto de Biótica Ilana Ambrogi também participou da atividade para compartilhar os aspectos jurídicos e legislativos com médicos que, por estigma e medo, não sabem como abordar um assunto comumente estigmatizado.
Denize Ornelas, médica de família e comunidade co-coordenadora do GT Saúde da População e ex coordenadora do GT MMFC, resgatou as ações já realizadas em parceria pelos grupos, incluindo a Cartilha produzida junto a Anis Institito de Bioética em 2021. Na sua fala, enfatizou que o acesso ao aborto legal deve envolver a especialidade, comprometida com a promoção da Justiça Reprodutiva, conceito cunhado pelo movimento de mulheres negras no ambito da Saúde Sexual e Reprodutiva.
Já a ginecologista obstetra Helena Paro trouxe para a mesa as questões técnicas relacionadas a como a APS pode acolher a demanda do aborto legal, tão reprimida no Brasil. E enfatizou a centralidade da força de trabalho da MFC nesta pauta.
“O MFC é quem que está mais perto da gestante, onde a gente consegue ter maior capilaridade do cuidado. Hoje a cada 5 mulheres que precisam fazer um aborto legal no Brasil, 3 precisam viajar para acessar esse direito”, destacou.
Confira a entrevista exclusiva de Helena Paro para o site da SBMFC.
Qual foi a receptividade do público do 17º CBMFC ao debate sobre aborto legal?
Eu venho de dois eventos cancelados à revelia por conta desta temática e por ser eu… E sempre que a gente vai em outros congressos as salas [com esta temática] – quando existem – estão vazias. Aqui foi muito interessante e impressionante, sala lotada, MFCs muito atentos, muito engajados nas discussões e a mesa foi muito qualificada. Significa que o tema do aborto tem sido valorizado.
E quais são os pontos desse debate mais urgentes a serem levados para médicos e médicas?
É necessário elucidar que o aborto induzido é uma questão de saúde, não só de saúde pública, é um direito humano fundamental. Esse recado foi dado na mesa e muito bem acolhido. Repito isso porque eu sou médica e a gente está sempre se sentindo muito sozinha. Ter esse momento aqui no congresso foi muito importante para a gente ver que não está só e que há uma massa crítica de profissionais de saúde capaz de formar opinião e de liderar mudanças sociais. Sobretudo, os médicos que podem promover nas suas equipes um debate mais qualificado, que não é só a favor e contra, e sim discutindo os argumentos de saúde. Esse tema foi historicamente negligenciado na formação de todos os profissionais de saúde.
Por que os MFCs são tão importantes nesta pauta?
Porque o MFC é quem está mais perto da gestante, onde a gente consegue ter maior capilaridade do cuidado. Hoje a cada 5 mulheres que precisam fazer um aborto legal no Brasil, 3 precisam viajar para acessar esse direito. Se a gente tem esse cuidado nas unidades básicas de saúde da família, a gente tem uma cobertura de 95% dos municípios.
Do ponto de vista do cuidado, qual é o papel do MFCs?
Acolher as meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar. Pode prover tanto o tratamento medicamentoso, quanto fazer o tratamento cirúrgico, sem necessidade de internação, se devidamente capacitado. Esses são os dois tipos de tratamento que cabem dentro da APS.
E como a sua experiência de trabalho pode contribuir para que a MFC e a APS respondam cada vez melhor à demanda pelo aborto legal?
Eu atuo num serviço de aborto legal na Universidade Federal de Uberlândia que acolhe os três tipos de abortos permissivos: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia fetal ou outra má formação incompatível com a vida e que, porventura, tenha decisão judicial para ser realizado.
A gente desenvolveu ali uma expertise no sentido dos tratamento ambulatorial, tanto aquele medicamentoso em casa, com orientação por telessaúde, tanto o tratamento cirúrgico sem necessidade de internação. Nossa parceria é nesse sentido: alguém que tem experiência da Obstetrícia pode treinar e formar os MFCs que vão ser a força motora de acolhimento dessa demanda de saúde essencial.
E como você recebeu a notícia do voto da Rosa Weber no julgamento sobre aborto até a 12a semana?
Estávamos na expectativa e foi muito importante porque ela entendeu que o aborto é uma questão de saúde pública, coerente com a OMS, mas também de justiça social. O que acontece é que mulheres ricas tem a capacidade de buscar recursos seguros para abortar, mesmo que clandestinos. Mas as mulheres pretas, pobres, as que moram nas regiões Norte e Nordeste, as indígenas, são as que mais morrem por aborto inseguro no nosso país.