No Dia Internacional do Orgulho LGBTIA+, datado em 28 de junho, o Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC promove uma série que será publicada durante a semana sobre mitos da saúde das populações lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti e variações de gênero, intersexo e assexual.
O primeiro post é sobre os mitos da LGBTIA+fobia na instituição.
Respostas elaboradas por Rita Helena Borret e Murilo Sarno, médicos de família e comunidade, membros do GT.
Mito: Profissionais de saúde bem intencionada(os) não reproduzem LGBTIA+fobia
Resposta:
A compreensão individual acerca de gênero e sexualidade é socialmente referenciada e, nas sociedades modernas ocidentais, atravessadas pelas normas binárias de gênero e pela heterossexualidade compulsória (1). Nesse sentido, não reproduzir a cisheteronormatividade configura um processo contínuo de reflexão crítica sobre as normas sociais em que, enquanto sujeitos sociais, somos construídos, atentando para os preconceitos que carregamos e reproduzimos ativa ou passivamente.
Mito: Eu só preciso perguntar sobre identidade de gênero e orientação sexual quando há relação com a demanda da pessoa.
Resposta:
Segundo a OMS, a sexualidade é um aspecto central do ser humano ao longo da vida, abrange sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivenciada e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade possa incluir todas essas dimensões, nem todas elas são sempre vivenciadas ou expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, legais, históricos, religiosos e espirituais. (2)
O estresse de minorias sexuais (3) impacta na formação de subjetividade e construção de autopercepção e autocuidado, bem como na construção de relações sociais, incluindo as familiares. A expectativa de ações discriminatórias por parte de profissionais de saúde se apresenta como um desafio na decisão sobre a revelação da identidade sexual e de gênero da pessoa LGBTIA+.
A Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT de 2013, reconhece o impacto do estigma social e da discriminação no processo de saúde e adoecimento das pessoas LGBTIA+ (4).
Assim, com o intuito de não reproduzir cisheterosexismo, é essencial que o profissional de saúde seja capaz de abordar identidade de gênero, sexualidade e práticas sexuais com todas as pessoas.
O melhor momento para perguntar sobre identidade de gênero e sexualidade pode variar de acordo com o modo com que o encontro clínico transcorre. Geralmente, a fase de identificação ou a fase que aborda a saúde sexual da pessoa são espaços oportunos.
Mito: Ferramentas para facilitar a marcação de consultas garante o acesso para a população LGBTIA+
Resposta:
O estigma social e o estresse de minorias se colocam como desafio para o acesso à saúde pela população LGBTIA+ (3). A vivência de ações discriminatórias e o medo dessas ações pode tornar o ambiente da unidade de saúde hostil e ameaçador para essa população. Assim, mas do que facilitar acesso, é necessário garantir atividades de educação permanente entre os profissionais de saúde, sem esquecer dos profissionais administrativos responsáveis por agendamento nas unidades, para garantir o respeito aos direitos da população LGBTIA+ no cuidado em saúde.
Um bom exemplo prático é refletir se, na sua unidade, o nome social das pessoas transexuais e travestis costuma ser respeitado e se, dentro da unidade, existe a oferta de sanitários que respeitem as identidades de gênero não binárias.
Mito: A orientação sexual – ser LGBTA+ – tem a ver somente com a prática sexual.
Resposta:
A orientação sexual apresenta diferentes componentes que podem ou não se interconectar. Há pelo menos três componentes que precisam ser considerados para se pensar a orientação sexual: o comportamento sexual, o desejo/atração e a identidade. A dimensão Atração/desejo aborda o desejo por intimidade sexual, emocional e romântica por outra pessoa. Essa construção do desejo é atravessada pelo contexto sociocultural e não é imutável ao longo da vida (5). Uma pessoa pode apresentar desejo homossexual e não agir sobre este, ter comportamento heterossexual, negando o desejo. Também é possível que uma pessoa tenha comportamento homo ou heterossexual sem ter desejo sexual correlato. Por último, mas não menos importante a identidade sexual está no campo da luta política por afirmação e construção de espaços sociais. (6) Uma pessoa pode ter desejo e comportamento homossexual e não se identificar como lésbica. A construção da identidade, do comportamento e também do desejo são atravessadas pela cisheteronormatividade e pela Lgbtfobia que nos cerca e nos constrói socialmente.
Mito: A discriminação não tem efeito na saúde das pessoas LGBTIA+
Resposta:
Estudos recentes demonstraram que as pessoas LGBT que vivem em lugares que tinham restrições contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo eram mais propensas a ter depressão e ansiedade do que as pessoas LGBT que viviam onde esse não era o caso. Muitas pessoas LGBT mais velhas não relatam sua orientação sexual aos profissionais de saúde por medo de serem mal atendimentos – ou de não receberem atendimento, o que por si só pode contribuir para um estresse adicional e, por sua vez, exacerbar os problemas de saúde existentes. (7) Pessoas trans e não binárias podem temer serem desrespeitadas e ridicularizadas no serviços de saúde, por não se “enquadrarem” no modelo hegemônico.
Mito: Falar sobre gênero e sexualidade pode transformar as pessoas em LGBTIA+
Resposta:
A construção da sexualidade é atravessada por aspectos sócio-culturais e da subjetividade. Processos de educação sexual atentos a diversidade podem ser extremamente úteis para diminuir o sofrimento das pessoas que constroem ou reconhecem a sexualidade fora da cisheteronormatividade. Não abordar a temática dentro das instituições é uma forma de reprimir e condicionar as pessoas LGBTIA+ à compulsoriedade de um sistema de gênero binário e heterossexual. Por fim, vale lembrar, que ser exposto a uma sociedade heteronormativa não torna ninguém hétero, mas dificulta o processo de autocompreensão das pessoas LGBTIA+.
Mito: A maioria das pessoas LGBTIA+ auto-declaradas são brancas.
Resposta:
A diversidade sexual e de gênero existe em todas as raças e classes. No entanto, a grande mídia brasileira e muitas publicações voltadas ao público LGBTIA+ reproduzem o sistema patriarcal racista e classista, ao silenciar a existência da população LGBTIA+ em interseccionalidade com outras vivências de opressão. Essa invisibilidade reforça situação de grande vulnerabilidade e isolamento social para partes das minorias sexuais e de gênero. (8)
Há pessoas LGBTIA+ em comunidades indígenas, comunidades nômades, pessoas de descendência africana ou asiática, que estão começando a ganhar visibilidade gradualmente.
Mito: Dentre as pessoas LGBTIA+, as intersecções de raça e classe estão bem representadas nas mídias e produções acadêmicas.
Resposta:
Profissionais de saúde que sejam LGBTIA+ nasceram, cresceram e estudaram em comunidades que reproduzem e mantém padrões heteronormativos e discriminativos. O grau de influência que cada profissional carrega consigo é variável, mas existente, e precisa ser percebido, refletido e trabalhado continuamente.
REFERÊNCIAS
- LOURO, G. L O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3.ed. Tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2015
- WHO | Defining sexual health, http://www.who.int/reproductivehealth/topics/sexual_health/sh_definitions/en/
- Meyer, I. H. (2003). Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: Conceptual issues and research evidence. Psychological Bulletin, 129, 674–697.
- Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bisseuxais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013
- Facchini R, Barbosa RM. Dossiê: Saúde das Mulheres Lésbicas promoção da equidade e da integralidade. Rede Feminista de Saúde. Belo Horizonte, 2006.
- Lopes Junior, A; Amorim, A. P. A; Ferron, M. M. Sexualidade e diversidade. Tratado de Medicina de Família e Comunidade, Capítulo 79, 2ª edição, Porto Alegre, Artmed, 2019
- Cardoso, M. R.; Ferro, L. F. Saúde e População LGBT: Demandas e Especificidades em Questão. PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (3), 552-563
- Health and healthcare disparities among U.S. women and men at the intersection of sexual orientation and race/ethnicity: a nationally representative cross-sectional study Trinh et al. BMC Public Health (2017) 17:964 DOI 10.1186/s12889-017-4937-9