Leia na íntegra a entrevista exclusiva que o conselheiro e coordenador da Câmara Técnica em MFC do Conselho Federal de Medicina (CFM), Celso Murad, concedeu ao Jornal Saúde da Família – publicação oficial da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) – sobre o Programa Mais Médicos.
SBMFC – Afinal, faltam médicos no Brasil ou apenas no sistema público?
Celso Murad – Não se sabe ao certo. Para termos um indicador preciso da falta ou não de médicos, precisamos contar com uma estrutura adequada. Precisamos de uma classe médica organizada, hierarquizada, com referência e contrarreferência, e saber qual a demanda por recursos humanos em cada unidade. Então fica claro que o problema não é só médico: falta saúde no Brasil, não temos uma estrutura de saúde montada no País. Esses locais onde não há médicos, por exemplo, não têm absolutamente nada. Não se sabe, ao menos, no caso de um serviço de saúde ser implantado, quantos médicos e demais profissionais de saúde serão necessários naquele local. Não temos tampouco um conhecimento epidemiológico próprio para estruturar um ponto de atendimento nessas regiões. É preciso ter um levantamento nosológico da área, priorizar as necessidades sanitárias do local e construir estruturas compatíveis com a demanda própria. A partir da existência dessa estrutura é que será possível levantar os dados necessários e as demandas dos profissionais. Assim é possível ter uma ideia se temos médicos suficientes para suprir essas necessidades ou não. O problema é muito maior do que a suposta falta de médicos.
SBMFC – Incentivar a vinda de médicos estrangeiros sem a revalidação auxilia na resolução do problema? Quais seriam os riscos e potencialidades dessa iniciativa?
Celso Murad – Isso é um imenso absurdo. Não consigo entender como um administrador de uma estrutura de saúde possa elaborar um projeto desse péssimo quilate. Para se ter ideia, recentemente os Estados Unidos vêm se reestruturando para aumentar a dificuldade do teste para médicos estrangeiros, com o fim de garantir assistência de qualidade. Nós estamos caminhando em direção oposta. Esse programa prevê um período de 120 horas de adaptação, ou seja, tempo para aprender a medicina regionalizada e o idioma português e ainda se adaptar a um local totalmente desconhecido. Isso é tão inqualificável que fico pasmo em saber que tenha saído de uma instituição relativamente séria como o Ministério da Saúde. O Governo não fala em momento algum em investir recursos financeiros. Sem investimento, qualquer estrutura dará errado. Serão disponibilizados médicos fracos atendendo a pessoas com pouca instrução. Um estudo norte-americano mostrou que os pacientes compreendiam cerca de 45% de tudo o que deveria ter sido explicado a eles. E veja, estamos falando de médicos norte-americanos atendendo pacientes norte-americanos. Imagine essa realidade no Brasil, com as dificuldades educacionais que temos, e claro, de idioma. No caso de um médico desses causar uma fatalidade, quem será o responsável? A dúvida paira no ar, já que ele não é ligado a nada e não tem direitos empregatícios, enfim, não tem representatividade. Esses médicos estão sendo jogados às feras.
SBMFC – Inicialmente, o governo federal propôs aumento no tempo do curso de graduação. Porém, recuou e anunciou que a nova proposta é que a medida seja substituída por uma residência médica obrigatória no SUS, feita após a graduação. Qual sua opinião sobre as medidas anunciadas pelo Governo em relação à formação médica?
Celso Murad – Se o Governo quiser oferecer, por sua conta, uma residência médica qualificada, de bom padrão, para formar profissionais que entende serem úteis dentro das normas estabelecidas pelas Comissões de Residência Médica, não vejo nenhum problema. Qualidade é algo que temos sempre que buscar. No entanto, fazer uma residência médica e enviar o profissional sozinho para um desses locais isolados, pensando que isso é residência, aí é brincadeira. Isso não é ensinar. Não há uma linha desse programa falando sobre uma equipe de saúde, sempre é citado apenas o médico.
SBMFC – Você é contra ou a favor da regulação do número de especialistas médicos pelo Governo? E como avalia a proposta de 40% de vagas de residência para Medicina de Família e Comunidade (MFC)?
Celso Murad – Em um país democrático, quem deve regular o mercado é o próprio mercado. O papel do Governo é se tornar atraente e competitivo em comparação ao mercado. Se o Brasil tem uma grande quantidade de médicos formados interessados em se tornar especialistas, é porque eles vão encontrar na especialidade aquilo que a medicina geral não lhes oferece. Claro, são as vantagens técnicas e financeiras que atraem esses profissionais, que vão lhe proporcionar maior qualidade de vida, atualização profissional e melhores condições também para seus familiares. A função do Governo é criar condições científicas, financeiras e sociais para que os médicos tenham direito de optar. Até porque sabemos que muitos médicos vocacionados à atenção básica estão se especializando em busca de melhores condições de vida. Eu mesmo sou pediatra geral e tenho plena consciência de que minha especialidade é desvalorizada. Se o Governo criar residência médica de qualidade, concurso público, plano de cargos e carreira, remuneração justa e boas condições de trabalho, ele mesmo vai regular o mercado sem precisar de medida nenhuma.
SBMFC – O Governo estuda a proposta de o primeiro ano para todas as residências ser em emergência e atenção primária à saúde. Qual sua opinião sobre essa iniciativa?
Celso Murad – O médico não pode ser obrigado a trabalhar onde ele tem menos condições de prestar serviços, que é na urgência e emergência. Um médico recém-formado deve aprender e acompanhar outros profissionais nessas atividades e não trabalhar diretamente no setor. Até porque a maioria das grades curriculares de nossas universidades raramente contempla urgência e emergência. Médicos despreparados na área apresentam um risco aos pacientes.
SBMFC – Sendo essa a proposta para todas as especialidades, como esse primeiro ano seria viabilizado?
Celso Murad – Há muitos anos era assim. Em determinadas especialidades, primeiro você fazia um estágio geral, que correspondia ao que era feito no último ano de medicina. Nesse período, se passava por quatro disciplinas básicas – clínica médica, cirurgia, ginecologia e obstetrícia e pediatria. Mas hoje, no sexto ano, o estudante passa a fazer residência. São, por exemplo, dois anos de clínica médica para cursar nefrologia e dois anos da especialidade. Seria realizada a mesma coisa, essa é a vantagem de formar um especialista com bom conhecimento generalista.
SBMFC – Em sua opinião, qual o papel da medicina de família e comunidade nas atuais propostas de interiorização e qualificação do trabalho médico?
Celso Murad – As propostas de interiorização dos médicos são ridículas, ineficientes e ilegais. Essas áreas afastadas precisam de bons médicos. A promoção de uma boa atenção básica diminuiria muito a assistência terciária, de alto custo e complexidade. Em decorrência disso, nós não desenvolvemos um sistema preventivo de assistência médica, o que é mais barato e mais eficiente.
SBMFC – Atualmente a residência é uma das formas de se tornar especialista, pois o médico pode também prestar a prova de título da especialidade. O interesse de mercado faz com que, por exemplo, mais pessoas queiram fazer dermatologia, enquanto há poucos médicos especialistas em medicina de família e comunidade", independente do número de vagas de residência existentes e da necessidade social. Qual sua opinião sobre a situação?
Celso Murad – Isso tudo está sendo jogado em uma questão de mercado. Trata-se de uma procura por melhorar qualidade de vida. Se o Governo quiser reverter o processo, tem de oferecer contrapartidas, realizar investimentos, ou seja, oferecer as mesmas possibilidades de retornos financeiro, estrutural e social para a atenção básica. Os programas de residência em MFC, por exemplo, deveriam ser priorizados pelo Governo, como é o caso da clínica médica e obstetrícia, para que o médico tenha uma boa formação e para que o SUS ofereça um serviço de qualidade.
SBMFC – Estudos internacionais mostram que a residência é um dos fatores de fixação dos médicos na região. O Pró-Residência, programa do Governo, visa à ampliação de Programas de Residência em Especialidades Estratégicas do SUS desde 2009, em regiões com carência desses profissionais. Entretanto, apesar da ampliação de bolsas nos últimos anos, o programa tem enormes desafios para criação de programas nas regiões norte, nordeste e centro-oeste. Duas das principais dificuldades são a falta de recursos para incentivo aos preceptores e a falta de profissionais com o título da especialidade nessas regiões. Qual sua proposta para enfrentar esse problema da desigualdade regional na concentração de médicos especialistas e de programas de residência nas regiões sul e sudeste?
Celso Murad – Essa concentração sempre existiu. É na região em que o médico faz sua residência que aparecem suas primeiras oportunidades de trabalho. A concentração de recursos financeiros do País está nessas regiões, consequentemente onde há melhores residências e estruturas. Nesses locais, o médico residente entra no mercado de trabalho e corta o vínculo com sua origem. Normalmente, esse profissional vê que tem mais condições financeiras e profissionais no lugar onde está. Ele não volta para sua cidade porque não há estrutura e nem condições financeiras para tal.
SBMFC – Quais seriam suas propostas para se resolver o problema da falta de assistência médica no setor público?
Celso Murad – Promover uma reestruturação, criar plano de cargos e carreiras e tirar da figura do médico a interiorização da saúde. Saúde sem médicos não existe, mas, só com médicos, também não. O nível de conhecimento científico do egresso da universidade é baixo. Para aprender medicina mesmo, esse profissional precisa entrar na residência. Ou trabalhar onde lhe oferecerem emprego. Pelo pouco conhecimento que tem, ele terá de pedir mais exames. Imagine esse médico. Imagine esse profissional com essa necessidade maior em um local que oferece condições de trabalho incomensuravelmente menores. Ele terá sérias dificuldades, e se tornará um risco para o paciente. Não somos absolutamente contra a vinda de médicos estrangeiros, mas é preciso que venham os melhores. Em todos os países do mundo, médicos do exterior realizam provas periódicas. O Mais Médicos vai contra as leis do próprio País.
SBMFC – A carreira de Estado proposta pelas entidades médicas é viável? Quais seriam os entraves e qual sua opinião a respeito?
Celso Murad – Para mim é fundamental. Não é possível criar a carreira de Estado no interior sem esse tipo de mecanismo. O poder judiciário passou muito tempo centralizado em algumas regiões por causa desse problema. A carreira de Estado depende única e exclusivamente de investimento. Dinheiro tem, já que o Governo gasta muito mais com publicidade, pagamento de juros de dívidas e estádios para a Copa do Mundo. Basta haver prioridade política.
SBMFC – Em sua opinião, qual deveria ser o salário base para um médico 40h no SUS? E 20h?
Celso Murad – Apoio o piso sugerido pela Federação Nacional dos Médicos (Fenam), que é de cerca de R$ 9 mil brutos para os de 20 horas e o dobro (R$ 18 mil) para os de 40 horas. A partir daí, você cria cargos e premiações. Enfim, com esses valores é possível levar bons médicos e profissionais de saúde em geral para o interior e periferias.
SBMFC – Você considera o pagamento diferenciado segundo a formação e a remuneração por desempenho, dentro de um vínculo de contrato estável para profissional, uma proposta viável para a valorização e qualificação do profissional no sistema público?
Celso Murad – Acho que é possível ter uma gratificação diferenciada, por produção ou qualificação, desde que sejam disponibilizados parâmetros corretos e honestos. O médico que produz mais gera bons estudos e merece uma premiação. Para isso, é essencial ter metas claras, técnicas, sólidas e transparentes. Sem contar também que o médico deve ter um salário base que cubra completamente suas necessidades.
SBMFC – Você gostaria de acrescentar algum comentário?
Celso Murad – Toda medida tomada em momento de crise tem de ser pensada com muito critério. Em nenhum momento, por exemplo, o CFM foi ouvido para a criação desse programa. Nós encaminhamos determinadas opiniões ao Governo que sequer foram citadas. Querem passar uma imagem de que o médico é culpado por tudo de ruim que ocorre nesses locais distantes. Chegar à população leiga e dizer que vai contratar mais médicos soa como solução, já que essa é a maior preocupação dos brasileiros. Se algo der errado, a culpa será do médico, é claro.