O dia internacional de combate à LGBTIA+fobia, 17 de maio, marca a data em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) a homossexualidade, o que ocorreu em 1990. Assim como qualquer produção científica, a CID não se isenta de vieses e de estigmas, o que é visto com relação a identidade de gênero e a orientação sexual (1, 2). A homossexulidade foi incluída na CID a partir de sua 6ª revisão, em 1948, como “personalidade patológica” (1). Nos anos que antecederam sua retirada, diversos movimentos sociais internacionalmente vinham ocorrendo, no sentido de lutar pela despatologização (2). No Brasil, essas movimentações iniciaram durante a ditadura cívico-militar, entre as décadas de 1970 e 1980, e tiveram importantes atuações de grupos precursores do movimento de LGBTIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Intersexuais, Assexuais e outras identidades sexo-gênero dissidentes) no país.
A cisheteronormatividade tem como principais bases a medicina ocidental e a psicanálise (3). A partir do século XIX, as ciências médicas categorizoaram a homossexualidade como uma condição patológica, atribuindo-a a possíveis distúrbios genéticos ou biológicos. No início do século XX, a psicanálise trouxe uma perspectiva psicológica, considerando-a como um desvio no desenvolvimento da sexualidade humana, portanto, rotulando-a como anormal (3).
A data surge com um caráter múltiplo, seja como um lembrete do progresso que foi feito na luta pelos direitos LGBTIA+, seja aumentar a conscientização sobre as formas de discriminação e de violência enfrentadas pelas pessoas representadas nessa comunidade. Pessoas LGBTIA+ enfrentam desafios contínuos em todo o mundo e destacar a importância da diversidade e da aceitação é uma forma de promover a igualdade, a inclusão e o respeito por todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero.
Violência e perseguição à comunidade LGBTIA+
Segundo o Dossiê de Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2023 da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), foi apreendido que ocorrem 151 assassinatos por ano e 13 casos por mês, considerando apenas os dados absolutos de 2017 a 2023, ou seja, sem considerar subnotificações, visto a atuação inadequada de muitas das secretarias de segurança pública (5). Isso se associa a uma narrativa de ódio, que se encontra, principalmente, nos espaços de poder, desestabilizando políticas sociais, culturais e educacionais que envolvam a atmosfera da comunidade LGBTIA+, a fim de colocar essa população como inimiga dentro do consciente popular. O crime contra essas pessoas adentra uma política de extermínio, que visa “salvar a sociedade do caos” com a promoção de uma limpeza social direcionada pela intolerância, preconceito, aniquilamento de direitos adquiridos, expurgação e violência extrema (3, 5, 6). A consequência disso é banalização dessas vidas, de seus corpos e, até mesmo, de suas mortes.
Em 2023, ocorreram 145 assassinatos – dado bruto desconsiderando falta de dados e/ou subnotificações governamentais -, número esse que se relaciona com a ausência de ações de enfrentamento da violência contra pessoas LGBTIA+, bem como aumento de ações antitrans e de propostas que visam institucionalizar a transfobia (5). Em relação às pessoas trans, os casos de vítimas de morte, considerando os últimos sete anos, predominam em pessoas transfemininas, entre 18 e 29 anos,que atuam como profissionais do sexo, que são negras, empobrecidas e moradoras da periferia.
Dados do Dossiê da ANTRA indicam que no último ano a maior concentração dos assassinatos foi observada na região Sudeste com 52 assassinatos (37% dos casos); em seguida, vê-se a Região Nordeste com 50 casos (36%). Levando em conta dados absolutos, no ranking por estado, ainda considerando de 2017 a 2023, os estados que mais assassinaram pessoas trans foram: 1º São Paulo (135); 2º Ceará (96); 3º Bahia (89); 4º Rio de Janeiro (83) e 5º Minas Gerais (80).
Considerando o Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTIA+ no Brasil de 2022, dados indicam que, seguido do segmento “travesti e mulher transsexual”, a população autodeclarada “gay”, segundo dados absolutos, compreende 35,16% das mortes de LGBTIA+ no referido ano de estudo (7). Da tipificação das mortes registradas em 2022, 228 casos (83,52%) correspondem a assassinatos realizados por terceiros, enquanto que 30 casos (10,99%) correspondem a suicídios decorrente da desestabilização proporcionada pela LGBTIA+fobia estrutural. Quando analisada a orientação sexual dessas vítimas, em 166 casos (60,81%) não era algo informado, enquanto que em 97 dos casos (35,53%) eram de pessoas gays (7).
A pesquisa em questão evidenciou que a violência física e psicológica contra LGBTIA+ no Brasil atinge todas as raças/etnias, idades, classes sociais e profissões, ainda que de maneira diversa e, em alguns casos, desigual. Analisando esses fatores, percebeu-se que os elementos normalmente presentes nas tentativas de assassinatos envolvem a identidade de gênero da vítima; expressão de gênero não normativa da vítima; impossibilidade de defesa; mais de um agressor; diversidade de ferramentas empregadas; uso extremo da força; local e quantidade dos golpes; sinal de crueldade e de tortura.
A partir das análises dos casos, em 2023, considerando apenas o genocídio a pessoas trans, pelo menos em 54% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade (8). Dentre eles, o uso excessivo de violência, múltiplos golpes, degolamento e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência, como o corpo arrastado pela rua e a localização dos golpes em regiões como cabeça, seios e genitais. Isso denota um elemento facilmente identificado em feminicídios e outros crimes de ódio e denuncia a transfobia presente neste tipo de crime (8).
Formas de violência contra a comunidade LGBTIA+
Uma das formas mais visíveis e brutais de violência é a agressão física, crimes esses, motivados por ódio e preconceito, não só destroem vidas individuais, mas também criam um clima de medo e de insegurança em toda a comunidade LGBTIA+.
Além da violência física, a violência psicológica é uma realidade cotidiana para muitas pessoas LGBTIA+. Comentários homofóbicos, transfóbicos e bifóbicos, bullying, discriminação no local de trabalho e rejeição familiar são apenas alguns exemplos dessa forma insidiosa de violência. Essas experiências podem ter um impacto devastador na saúde mental, levando a quadros de ansiedade, de depressão e de até mesmo suicídio.
As violências social e estrutural também desempenham um papel significativo na marginalização da comunidade LGBTIA+. Políticas discriminatórias, falta de acesso a serviços de saúde adequados, exclusão social e barreiras legais para o reconhecimento de relacionamentos entre pessoas que fogem da cisheteronormatividade são apenas algumas das maneiras pelas quais a estrutura da sociedade perpetua a discriminação e a violência contra esse grupo.
É importante reconhecer que a violência contra a população LGBTIA+ não é um fenômeno isolado, mas sim enraizado em sistemas de opressão que estruturam nossa sociedade. A interseccionalidade desempenha um papel crucial aqui, pois as pessoas LGBTIA+ que são negras, indígenas, gordas, idosas, com deficiência, pobres, em situação de rua, moradoras de áreas rurais, dentre outras enfrentam formas adicionais e específicas de violência e discriminação.
Para combater eficazmente a violência contra a população LGBTIA+, são necessárias ações coordenadas em várias frentes. Isso inclui a implementação e a aplicação rigorosa de leis antidiscriminação, campanhas de conscientização para desafiar estereótipos e preconceitos, programas de educação inclusiva nas escolas, acesso igualitário a serviços de saúde e a apoio psicossocial e a criação de espaços seguros e acolhedores para a comunidade LGBTIA+. (8,9)
Acolhimento na área da saúde
O acolhimento à comunidade LGBTIA+ nos serviços de saúde é uma parte essencial do compromisso com a ética e o respeito à dignidade humana. Mesmo tendo esse potencial benéfico para cuidado em saúde, os espaços de atendimento também podem cumprir o papel oposto, quando os profissionais não estão adequadamente capacitados ou, em piores cenários, quando são reprodutores de violência e barreiras de acesso, fazendo com que em muitos momentos pessoas LGBTIA+ não busquem os serviços de saúde. (9)
Dessa forma, os serviços devem oferecer a garantia de respeito à diversidade de identidade de gênero e orientação sexual, com constante olhar para a despatologização o que se faz possível através da formação de profissionais capacitados. Para mudanças estruturais no sentido de melhoria do acesso à população LGBTIA+ à Atenção Primária à Saúde, a Medicina de Família e Comunidade tem papel fundamental através da garantia de formação de especialistas sensíveis e tecnicamente preparados para essa abordagem. É preciso que seja efetivamente incluída essa temática nas matrizes e grades curriculares de ensino dos programas de residência ou mesmo no âmbito da graduação, de forma transversal. Como médicas e médicos de família e comunidade, devemos sempre que possível realizar abordagem comunitária e familiar, colocar em prática o método clínico centrado na pessoa para oferecer o melhor cuidado possível, zelar pela ambiência dos locais de atendimento e investir na educação permanente da equipe, para trazer mais equidade de acesso e de fato promover saúde a essa população.
Documentos que devem ser destacados para a orientação de práticas comprometidas com o combate à LGBTIA+fobia na saúde incluem a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (10), a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (11) e os Princípios de Yogyakarta (12).
É um compromisso de médicas e médicos o respeito e zelo pelo Código de Ética Médica (13). Além disso, vale lembrar o tradicional juramento de Hipócrates, que também já dizia: “Não permitirei que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e meu paciente” (Compromisso Médico, derivado do Juramento de Hipócrates) (14).
Autoria: Daniele Caséca Ruffo – MFC em Brasília/DF
Joyce de Lima Ferreira – acadêmico representante da IFMSA Brazil
William de Freitas Barros – acadêmico representante da IFMSA Brazil
Revisão: Marcello Medeiros Lucena – MFC em Florianópolis/SC e Co-coordenador do GT de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC
Grupo de Trabalho em Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC
REFERÊNCIAS:
- Carneiro AJ dos S. A MORTE DA CLÍNICA: MOVIMENTO HOMOSSEXUAL E LUTA PELA DESPATOLOGIZAÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL (1978-1990). Em Florianópolis, SC; 2015 [citado 11 de maio de 2024]. Disponível em: https://www.academia.edu/download/43220121/A_Morte_da_Clinica._Movimento_Homossexual_e_Luta_pela_Despatologizacao_da_Homossexualidade_no_Brasil_1978-1990.pdf
- Galvão MCB, Ricarte ILM. A Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11): características, inovações e desafios para implementação. Asklepion: Informação em Saúde [Internet]. 2021 Jul 9;1(1):104–18. Available from: https://revistaasklepion.emnuvens.com.br/asklepion/article/view/7/19
- CONSTRUÇÃO DO COMPORTAMENTO HOMOFÓBICO: bases psicológicas Paracatu 2020 [Internet]. [cited 2024 May 11]. Disponível em: http://www.atenas.edu.br/uniatenas/assets/files/spic/monography/CONSTRUCAO_DO_COMPORTAMENTO_HOMOFOBICO__bases_psicologicas.pdf
- Dia Internacional de Luta Contra a LGBTfobia: entenda mais sobre a data [Internet]. www.correiobraziliense.com.br. [cited 2024 May 11]. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/05/amp/5094917-dia-internacional-de-luta-contra-a-lgbtfobia-entenda-mais-sobre-a-data.html
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- Diplomatique LM. CONTRA O PATRIARCADO E O CAPITALISMO A resistência LGBTI+ e a política de morte bolsonarista [Internet]. Symmy L, editor. Le Monde Diplomatique. 2019 [cited 2024 May 11]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/resistencia-lgbti-e-a-politica-de-morte-bolsonarista/
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- Ciasca SV, Hercowitz A, Junior AL. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. 1. ed. Santana de Parnaíba [SP]: Manole; 2021.
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