A resposta é simples, mas não é óbvia. Tudo e talvez muito mais. O médico de família é parte de uma mudança necessária e defendida. É parte de uma idéia de atenção integral, de conhecer a pessoa inserida no território, no contexto que lhe dá sentido, a sua vida e também a sua morte. O médico de família tem a vantagem de conhecer a pessoa doente, de olhar sob a superfície da água muitas vezes calma à primeira vista e que esconde redemoinhos de angústia, dor, de questionamentos existenciais os quais são tão ou mais profundos em um paciente com uma doença limitante, que o expõe à questão da morte e do morrer.
Esse profissional é o regente de uma ópera que neste caso especial pode ser um drama. O conteúdo pode ser cinza, obscuro levantando os espectadores as lágrimas muitas vezes, pois expõe a tristeza e a totalidade de uma dor muitas vezes desconsiderada por todos. Que desfecho tem tal obra? Depende quase exclusivamente da atitude do profissional e de que maneira ele enfrenta a questão da morte e do morrer, a sua e dos seus pacientes.
O profissional de saúde é exposto diariamente a questões que envolvem a terminalidade, no entanto, não é treinado para tal. Poucos cursos de saúde no Brasil abordam a temática da morte, do morrer e dos cuidados paliativos de maneira formal, dentro do seu currículo de graduação. Com o profissional médico não é diferente. O médico de família dentro da rotina diversificada de uma unidade de saúde, sem o treinamento adequado para lidar com a demanda adicional de pessoas com doenças que apresentam uma grande carga de sofrimento, muitas vezes é levado pelo redemoinho ou ao se defrontar com a Górgona fica petrificado sem saber o que fazer e como encontrar soluções. Na busca um escudo que o defenda da visão que a morte e o morrer trazem a quem trabalha, encontra a ilusão, muitas vezes propagada, de que cruzando os braços o resultado será o mesmo agindo ou não, uma versão pragmática do “eu não tenho mais nada a fazer por você”.
Entretanto, essa pessoa doente e seu familiar continuarão morando no território de cobertura deste profissional, continuarão buscando auxílio para controle dos seus sintomas físicos e suas questões psicológicas, sociais e espirituais (mesmo que muitas vezes estas não sejam claramente expostas) durante um período que pode ser muito longo. Seus familiares e cuidadores continuarão procurando a unidade de saúde para dúvidas diversas, para auxílio no cuidado dos seus e posteriormente para questões que envolvem o luto, as quais se não reconhecidas sobrecarregam o profissional, sua agenda e exigem do sistema de saúde mais recursos.
Talvez a melhor situação possível e, a única disponível, seja reconhecer as limitações e as vantagens e trabalhar em cima delas. O conhecimento do território, o mapeamento da área, da população que a equipe atende, a elaboração de uma agenda de acordo com as necessidades desses pacientes identificados como necessitando de cuidado paliativo é um ótimo começo. Utilizar o vínculo com a pessoa doente e sua família, a possibilidade de exercer uma longitudinalidade do cuidado nos permite tratar mais e melhor, oferecendo assim a tão comentada qualidade de vida buscando romper as barreiras que possam existir ao entendimento da situação pela pessoa doente e seu familiar e assim, propor um final de caminhada muito mais seguro, muito menos doloroso e menos solitário. Aproveitar o trabalho em equipe, um dos piliares que compõe centro do trabalho na atenção primária para dividir as atribuições, as tarefas, as angústias, os medos e as atribuições pois o cuidado paliativo não se faz sozinho e precisa essencialmente de uma equipe com muitas pessoas dispostas a querer ajudar o outro e que reconhecem no outro um ente que merece viver sem dor, com uma boa qualidade de vida perante uma doença limitante que ameaça sua vida e que o expõe à morte., Uma equipe quando capacitada funciona muito bem, todas as peças da engrenagem são necessárias para o bom funcionamento dessa máquina.
A OMS defende o maior acesso ao cuidado paliativo através da atenção primária e da participação da comunidade em conjunto logicamente com os outros níveis de atenção mas com foco no primeiro nível de atenção. Tal consideração é dada a partir da crise dos sistemas de saúde nacionais e da necessidade de ampliar o acesso. Essa ampliação passa pelo Médico de Família e o Brasil mesmo com uma porcentagem de MFC s aquém das necessidades tem um imenso potencial. Qual será o seu papel nessa história? Você acompanhará aqueles que mais precisam nessa jornada?
Santiago Rodríguez Corrêa
Médico de Família
Projeto Estar ao Seu Lado- Cuidados Paliativos na Atenção Primária
Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil