30 de outubro de 2025

Convocação à ação! Medicina de Família e Comunidade em defesa dos Direitos Humanos frente a maior chacina da história do Estado do Rio de Janeiro


Mais um dia de tragédia anunciada, perpetrada e perpetuada, sem que sejam oferecidas soluções reais para o problema da segurança pública, soluções comprometidas com a vida e com o respeito  aos direitos humanos. A “Operação Contenção” parece repetir o cenário televisionado há 15 anos, na ocupação policial do Complexo do Alemão, no entanto, é o maior massacre da história do Rio de Janeiro. E o que se fez de lá pra cá? Até a finalização deste documento, foram registradas mais de 130 mortes em decorrência desta operação. São incontáveis famílias e moradores vítimas diretas e indiretas desta ação profundamente violenta.  

A favela se tornou um espaço de exceção, onde o braço armado do Estado se faz presente de forma violenta e cruel. Nas favelas, atualmente, não há democracia, não há direito de ir e vir, não há direito à segurança, saúde e educação públicas de qualidade. A polícia adentra vielas e becos, invade casas e executa pessoas sem lhes permitir o direito de presunção de inocência. Como Achille Mbembe conceitua a necropolítica: certos grupos e territórios são gerenciados pelo Estado através da morte, do abandono e fundamentalmente através da violência (estatal ou criminal).

A brutalidade que assistimos não foi mais um acidente, nem um “excesso” isolado. Ela é parte de uma política contínua de gestão da vida baseada na morte , cujo alvo tem raça/cor, território e CEP. No Brasil, homens negros são presos e mortos em proporção devastadoramente superior aos brancos, e esse encarceramento em negros é justificado há décadas em nome da chamada “guerra às drogas”: uma guerra que, na prática, não combate mercado ou fluxo de drogas, mas sim corpos negros. A política de segurança pública converteu as vilas,  favelas e comunidades em campo de experimentação da violência estatal: helicópteros atiram do alto, tanques invadem por baixo e tribunais legitimam depois. O Estado não só mata: ele captura, segrega, deteriora psicossocialmente e produz luto como destino racial. A chacina é a face visível; o encarceramento é a continuidade silenciosa do mesmo projeto. 

No campo das políticas públicas de segurança e justiça, é urgente inverter a lógica da punição racializada e do encarceramento em massa. Defendemos investimento em políticas de desencarceramento, revisão das prisões provisórias, fortalecimento de medidas alternativas à prisão, revogação de dispositivos da guerra às drogas que operam como máquina de captura de jovens negros e ampliação de políticas de justiça restaurativa e de cuidado em liberdade, além da promoção institucional séria e responsável  do debate sobre a descriminalização do uso e comércio das drogas no Brasil. Segurança pública não se constrói com encarceramento e genocidio da juventude negra, se constrói garantindo vida, direitos e futuro.

Muitos podem se perguntar: mas o que a saúde, ou a Medicina de Família e Comunidade, têm a ver com isso? Respondemos: a Estratégia Saúde da Família, é o único serviço público presente em muitos territórios periféricos, de maneira a garantir o direito à cidadania. A resposta continua com outra pergunta: quem acolhe os efeitos de toda essa guerra às vidas negras e periféricas?

A cada operação policial, famílias não são apenas atingidas pelas balas, mas pelos traumas que ficam. São corpos feridos, mas também mentes abaladas, famílias dilaceradas, crianças que crescem sob o peso do medo, da violência e do luto. E são as unidades básicas de saúde que seguem de portas abertas, mesmo quando tudo está fechado e o silêncio toma conta das ruas enquanto a contagem de corpos acontece. O silêncio é rompido pelo som do choro e pelos gritos de dor daqueles que perderam de forma abrupta e violenta pessoas queridas.

Durante as operações, as escolas e unidades básicas de saúde fecham sob o terror dos tiros, consultas de pré-natal, tuberculose, hipertensão, diabetes, saúde mental, entre outras, deixam de acontecer. A necropolítica atua não só por meio de tiros, bombas e assassinatos, mas também ao impedir o acesso a consultas médicas, de enfermagem e aos inúmeros processos de cuidado ali ofertados. A “Operação Contenção” vai seguir matando corpos negros através das sequelas que vai deixar nos sobreviventes desses homicídios. E fica o questionamento: temos rede de saúde mental adequadamente estruturada para ofertar cuidado aos pacientes e seu sofrimento mental decorrente  dessa chacina? Temos profissionais de saúde capacitados para realizar o  acolhimento e cuidado frente a este nível absurdo de sofrimento, tortura e violação de direitos? Se não temos, qual o plano de ação para desenvolver esse acolhimento respeitando os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde?

E como ficam os territórios após uma operação? Ruas manchadas de sangue. Casas com marcas de bala. O som dos helicópteros e tiros ecoando na memória. E mesmo assim, no dia seguinte, a equipe da unidade básica de saúde está lá, porque a comunidade precisa e concordamos que o cuidado não pode esperar.

Entendemos como prioritária a ampliação deste cuidado, inclusive, para necessidade de amparo ao luto dessas famílias. O tom adicional da perversidade do Estado no sepultamento dessas vidas é evidenciado no momento em que pessoas foram obrigadas a resgatar os corpos em busca de uma resposta para o velamento digno de seus familiares. A violência simbólica e absolutamente palpável da possibilidade de elaboração do luto é, também, uma forma de sepultar a vida de centenas de outras pessoas na favela que, sabidamente, aumenta seus índices de suicídio, dependência química e desenvolvimento de diversos outros agravos em saúde mental. Agravos, inclusive, que serão discutidos por anos dentro do contexto da Atenção Primária à Saúde e das Clínicas da Família do Rio de Janeiro.

Crianças cujas memórias afetivas de pais, irmãos, tios, serão marcadas pelo sangue nas ruas da Penha e do Alemão; avós, mães, pais e irmãos, cujos filhos estão sendo agredidos publicamente como bandidos no momento crucial de primeiros cuidados emocionais pós-trauma, são apenas alguns dos elementos a se somarem ao nível de responsabilidade da APS no cuidado pós-massacre. Toda essa violência sem resposta e espetacularizada na grande mídia representa uma ferida viva que não se fecha na figura de um Estado omisso, racista e genocida.

Assim, nos cabe questionar: qual o suporte que a Secretaria Municipal de Saúde oferece a esses trabalhadores que vivem e atuam nos territórios mais afetados pela violência? Que plano de contingência se oferta aos seus trabalhadores com unidades abrindo às 7h da manhã, sobretudo ACS que vivem nesses territórios, e que certamente vão ter a vida pessoal e profissional impactada por essa tragédia? Que garantias de segurança são oferecidas para que esses profissionais possam chegar, permanecer e voltar em segurança para suas casas?  Qual o suporte em saúde mental oferecido aos trabalhadores? 

Quem cuida de quem cuida? Como cuidar quando a nossa prática profissional está  permeada por medo e reação aguda ao estresse?

É urgente  abolir esse modelo de “segurança” que produz adoecimento coletivo, morte seletiva e que não tem garantido qualquer melhoria de condições de vida para a população. É inaceitável uma gestão que silencia a dor em prol de votos e que força o restabelecimento da ordem através do corpo de outros que estão em sofrimento. 

Neste documento, mais do que manifestar necessária perplexidade, desejamos apoiar profissionais de saúde em ações de acolhimento e cuidado voltados para a população frente a tudo que foi vivido e as consequências devastadoras que essa ação provoca em todos. Neste sentido, propomos um conjunto de ações que devem ser consideradas de maneira contextualizada e conforme a dinâmica de cada um dos territórios e comunidades afetadas:

  • Organização de agendas e atividades nas Clínicas da Família para que profissionais de saúde consigam se acolher depois da chacina ocorrida na data de 28/10; 
  • Promoção de espaços diários ou semanais de acolhimento e reflexão entre profissionais ao longo das próximas semanas e meses, preferencialmente no início da manhã ou no fim do dia. Lidar coletivamente com toda a dor e sofrimento que serão manejados nos próximos dias é fundamental para não tornar o atendimento automático e para reduzir a chance de adoecimento;
  • Organização do processo de trabalho para que possamos garantir espaços de acolhimento à população (individuais e coletivos) para o medo, para a revolta, para a dor, para o sofrimento gerado pelo ocorrido, pelas notícias, pelas mentiras e por toda a sensação de pavor que isso gera; e
  • Considerar a dificuldade da população em buscar acolhimento e cuidado nas Unidades Básicas de Saúde, que representam o Estado nas comunidades em que estão inseridas. Para tal, desenhar estratégias de oportunização de acolhimento nos espaços organizados pela sociedade civil na comunidade. Apoiar e fortalecer iniciativas locais de acolhimento é importante como aproximação e ponte para coordenação do cuidado das famílias e pessoas afetadas;
  • Acolher e apoiar com instrumentos legais as pessoas que não tenham conseguido chegar ao trabalho frente ao atual contrato de violência armada no território e o sentimento de medo e  sofrimento que este produz nos moradores;
  • Garantir informações precisas e seguras sobre violação de direitos, sobre direitos garantidos e sobre caminhos para acessá-los. Incluímos nesta nota, para ampla divulgação, o endereço e contatos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro:

– Endereço na cidade do Rio de Janeiro: Rua México, 11, Sala 1501 – Centro, Rio de Janeiro. Endereço nos demais Estados pode ser acessado em: https://defensoria.rj.def.br/Servicos/servicos-plantao#plantao_atendimento. Contato telefônico: 129

– Ouvidoria da Defensoria púlbica: https://defensoria.rj.def.br/institucional/ouvidoria-acesso. Contato telefônico: 0800 282 2279

Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (21) 2332-6344 ou (21) 23326346

  • Propor espaços coletivos para validação e acolhimento ao luto das famílias e de amigos das vítimas. Luto de quem foi e luto de tudo que se perde a partir de situações como essas; 
  • Incentivar a notificação individual de violência interpessoal e autoprovocada, enfatizando violência do Estado para quem mencionar ou trouxer repercussões do massacre em saúde (individual, familiar ou da comunidade) nas consultas individuais, visitas domiciliares ou grupos.

 

É profundamente urgente relembrar e reafirmar a todo o tempo que vivemos em um país onde a pena de morte não é constitucional e toda a população tem, ou deveria ter, pleno direito à saúde e cidadania. Enquanto profissionais da Medicina de Família e Comunidade, atuando na Atenção Primária à Saúde, é nosso dever nos comprometer com a garantia desse direito. 

Neste cenário em que a opinião pública insiste em desumanizar pessoas e deslegitimar dores e sofrimento, é preciso que tenhamos o compromisso de garantir os princípios doutrinários do SUS de universalidade, integralidade, equidade e humanização. Humanizar e garantir cidadania para pessoas negras neste país é um compromisso, uma postura política e uma frente de luta que nós, enquanto profissionais da Medicina de Família e Comunidade não podemos nos furtar de assumir. 

Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2025

 

Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra 

Grupo de Trabalho de Mulheres na Medicina de Família e Comunidade 

Grupo de Trabalho de Saúde Mental

Grupo de Trabalho de Saúde Prisional

Grupo de Trabalho  de Saúde Indígena

Grupo de Trabalho de Saúde Planetária

Grupo de Trabalho de Educação Médica

Grupo de Trabalho de Saúde da População em Situação de Rua

Grupo de Trabalho de Cuidados Paliativos

Grupo de Trabalho Saúde da População em Situação de Rua

Grupo de Trabalho de Saúde Digital e Classificações

Grupo de Trabalho de Atenção Domiciliar

Grupo de Trabalho de Gestão e Políticas de Saúde

Grupo de Trabalho de Abordagem Comunitária

Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos

Grupo de Trabalho de Acesso e Gestão da Clínica

Grupo de Trabalho de Prevenção Quaternária e Medicina Baseada em Evidências

Grupo de Trabalho de Pesquisa

Grupo de Trabalho de Medicina Rural

Grupo de Trabalho de Abordagem Familiar 

Grupo de Trabalho de Cannabis Medicinal

Grupo de Trabalho de Práticas Integrativas Complementares 

Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade