Modesto AAD. Busca por avaliação de próstata, disfunção erétil e demanda oculta de homens na Atenção Primária à Saúde [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2016.
– Oi, eu sou Antônio, sou médico de família dessa equipe, em que eu posso te ajudar hoje?
– Doutor, tá tudo bem, eu vim só fazer aquele exame da próstata.
– E por que o senhor decidiu fazer esse exame?
– Ah, doutor, minha mulher me encheu o saco, sabe como é… Tô com 45 anos, nunca fiz exame de nada…
– E você tá sentindo alguma coisa?
– Não, tudo bem… Medi minha pressão esses dias, tava boa…
– E você tem tido dificuldade pra urinar?
– Não…
– O jato é fraco, fica pingando na cueca…?
– Não, normal.
– Acorda de noite para fazer xixi?
– Uma vez, só.
– E a ereção? Tem tido algum problema de ereção?
– É, doutor… Já que o senhor perguntou, essa parte aí não tá boa mesmo, não…
Em dois anos de residência e quatro anos de trabalho como Médico de Família e Comunidade em uma mesma equipe da Estratégia Saúde da Família em São Paulo, atendi muitos homens buscando screening de câncer de próstata. Diziam “já tenho mais de quarenta anos”, “minha mulher mandou”, “nunca fiz exame de nada”, “vi na televisão” e “quero me cuidar”; muitos negavam sintomas geniturinários, mas boa parte acabava se queixando de dificuldades de ereção posteriormente.
Percebendo que a próstata tinha se tornado o carro-chefe da saúde do homem, no contexto da recém lançada Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), comecei a suspeitar que, para os homens, o carro-chefe fosse mais um carro alegórico, trazendo a reboque – porém ocultamente – questões de sexualidade. Em 2013, decidi tentar responder de forma mais consistente a duas perguntas: por que os homens não dizem o que sentem? E por que lançam mão de um exame para falar de um problema?
O referencial de gênero permitiria abordar as questões clínicas mais individuais (como a demanda oculta) e mais coletivas (como a relação dos homens com o serviço de saúde) que me instigavam, e a integralidade seria imprescindível a um trabalho que se pretendia propositivo. A dimensão da prevenção quaternária, por sua vez, trazia uma terceira questão: a que riscos se submete um homem que comparece ao serviço buscando avaliação de próstata e ocultando uma queixa de disfunção erétil? Ou como a forma como os homens se expressam poderia influenciar o desfecho de seus atendimentos?
A pesquisa de mestrado que partiu de questões surgidas na minha prática clínica e começou tentando entender por que os homens não diziam o que sentiam e em que riscos se envolviam com essa conduta acabou se tornando um doutorado e desdobrando todas as proposições investigativas e analíticas iniciais, sob a orientação da Profa. Dra. Marcia Thereza Couto, antropóloga.
O objetivo da pesquisa foi entender como a população masculina usa serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) e como expressava suas queixas, a partir do caso dos homens que buscavam avaliação de próstata ou têm questões referentes a disfunção erétil (ou outros problemas de sexualidade). Buscamos identificar articulações entre esses problemas e a demanda por rastreio, bem como entender como os serviços (particularmente os/as médicos/as) lidam com demandas expressas e subjacentes. A pesquisa foi qualitativa e envolveu entrevistas semiestruturadas com 16 profissionais e 15 usuários maiores de 18 anos da Estratégia Saúde da Família em três UBSs em São Paulo e duas em Mauá – homens em cujas consultas surgiram questões sobre próstata, disfunção erétil ou outros problemas de sexualidade. Além disso, observamos os cinco serviços participantes.
A análise de conteúdo das entrevistas demonstrou como aspectos dos(as) profissionais se relacionam à forma como eles(as) percebem, acolhem e dão sentido às demandas dos homens, permitindo também apontar mudanças em curso. A observação dos serviços ajudou a identificar características de APS seletiva em UBSs mauaenses, favorecendo o desencontro entre as demandas e dificuldades dos homens e as ações oferecidas e idealizadas, e de uma APS mais abrangente nas UBSs paulistanas, que facilita a presença dos homens, mas nem sempre contempla questões de gênero. Entre os usuários, identificamos a incorporação de discursos médicos envolvendo risco e cuidado em saúde, nomeamos fatores de entrada, facilitação e manutenção de sua presença na UBS e apontamos fatores relacionados à expressão de suas demandas, mostrando como essa expressão pode influenciar o cuidado recebido e mesmo colocar o homem sob risco de iatrogenia. Discutimos possibilidades de superar olhares reducionistas e estereotipados e abordagens prostatocêntricas e medicalizadoras da saúde masculina. Com isso, esperamos contribuir à diminuição da invisibilidade dos homens, positivando sua avaliação e cuidado integrais.
A tese foi defendida em 28 de novembro, e o trabalho breve estará disponível no Banco de Teses da USP, mas pode ser pedida pelo email filomedlit@yahoo.com.br.