Nesse dia de rememorar, fortalecer e visibilizar as lutas por direitos à população trans, o Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da SBMFC abriu espaço em suas redes sociais para que Médicas e Médicos de Família e Comunidade falassem de suas dificuldades e dúvidas no atendimento de pessoas trans.
Os tópicos a seguir discutem as perguntas e dificuldades enviadas. O texto foi elaborado pela médica e médico de família e comunidade, Ana Paula Andreotti Amorim e Marcello Medeiros Lucena, revisado pela médica de família e comunidade Bianca Niemezewski Silveira, membras e membro do GT.
Sigla e termos
A sigla LGBTIA+, assim como suas variações, tem sido utilizada preferencialmente em relação a outras siglas, para apontar a população de pessoas com vivências de orientações sexuais, identidades de gênero e características corporais tradicionalmente associadas a sexo que não são consideradas hegemônicas socialmente, compreendidas dentro do espectro da diversidade. Representa lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, pessoas intersexo, assexuais e demais identidades e vivências relacionadas a essas diversidades não hegemônicas. As letras Q (queer), P (pansexuais) e N (não-bináries) também costumam estar presentes nessas representações, embora nichos do movimento social organizado discutam as formas de representações dessas identidades.
A abreviação “trans” tem sido bastante utilizada e considerada adequada para representar a ampla gama de identidades e vivências que envolvem diversas variabilidades de gênero, tanto academicamente quanto socialmente. Muitas publicações oficiais apontam o termo “transgeneridade/transgênero” como mais adequado e representativo, porém por construções sociais diversas outros termos são também utilizados e aclamados na realidade brasileira, como “transexualidade/transexual”, “travestilidade/travesti”, “transmasculinidades/pessoa transmasculina”, “variabilidade de gênero” etc.
É importante consultar como cada pessoa se identifica em relação ao seu gênero e respeitar sua autorreferência identitária sempre, assim como seus pronomes e seu nome social, caso haja.
Hormonização
Hormonização é o termo que deve ser prioritariamente utilizado para o uso de hormônios por pessoas trans, pois os termos “hormonioterapia” e “reposição hormonal” induzem a percepção de que pessoas trans precisam de terapia por serem trans ou mesmo que obrigatoriamente necessitam de alguma forma de tratamento. Pessoas médicas generalistas podem realizar acompanhamento da hormonização desde que tenham capacidade técnica para isso.
APS e saúde de pessoas trans
A Atenção Primária à Saúde é um nível assistencial privilegiado para oferecer a maioria dos cuidados em saúde necessários pelas pessoas trans que desejam realizar hormonização, pois todos os atributos da APS são importantes e necessários para essa população, que tem mais vivências de exclusão social, e, em consequência, abandono afetivo, violências, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, transtornos mentais comuns, uso prejudicial de substâncias psicoativas e ISTs do que a população em geral.
Outras transformações corporais
O acesso a outras estratégias de transformações corporais como cirurgias pelo SUS, atualmente, variam conforme pactuações de fluxos de encaminhamentos e disponibilidade de serviços em cada estado. A normativa vigente sobre cirurgias de transformações corporais para pessoas trans é a Portaria do Ministério da Saúde nº 2.803 de 2013.
Contracepção
A hormonização em pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero não pode ser considerada como contracepção efetiva. Homens trans e pessoas transmasculinas que tenham útero, mesmo em hormonização com testosterona e amenorreia, devem ser aconselhados sobre risco de gestação e possibilidade de planejamento familiar/contracepção. Qualquer método contraceptivo pode ser utilizado em pessoas que estejam em uso de testosterona desde que avaliado individualmente riscos/benefícios. Métodos contraceptivos hormonais com estrógenos podem ser considerados, porém deve-se atentar para o aumento do risco de eventos tromboembólicos habituais e para possíveis efeitos corporais indesejados, como menstruação e turgecência mamária.
Saúde integral
Todas as necessidades de saúde dessas pessoas precisam ser cuidadas pela APS, e não somente a vivência de transgeneridade deve ser abordada. Para tanto, não basta que MFCs saibam atender de forma integral, longitudinal, com coordenação do cuidado, oferecendo acesso, com competência corporal e orientação do atendimento para a realidade familiar e comunitária da pessoa. É preciso que a equipe de todo o serviço de saúde se comprometa com esses e outros pontos de atenção.
Transfobias
Qualquer tipo de transfobia é considerada crime e também infração ética grave, que exclui e aumenta a vulnerabilidade de pessoas trans. A transfobia institucional é uma realidade dos serviços que deve ser enfrentada com discussões abertas sobre o convívio entre profissionais, que muitas vezes é permeado de LGBTIA+fobias e outras violências, assim como sobre a organização dos processos de trabalho.
Rastreamentos
Rastreamentos de câncer de colo de útero e mama são cuidados frequentemente negligenciados em pessoas trans.
A oferta de rastreamento do câncer de colo de útero deve ser realizada para qualquer pessoa que tenha colo de útero e já tenha tido algum tipo de penetração vaginal na vida (seja peniana, por masturbação ou com próteses) é a partir dos 25 anos de idade. Se pessoa com 2 exames sem alterações com intervalo de 1 ano, a periodicidade de rastreamento é de 3 anos.
A oferta de rastreamento do câncer de mama deve ser realizada para:
- Homens trans e pessoas transmasculinas que não tenham realizado mamoplastia, seguindo a recomendação de realização de mamografia bianual para pessoas sem fatores de risco entre 50 e 69 anos. Pessoas transmasculinas que tenham feito mamoplastia, deve-se individualizar cada caso, considerando a possibilidade de tecido mamário residual.
- Mulheres trans e pessoas transfemininas que tenham hormonizado com estradiol por pelo menos 5 anos e estejam entre 50 e 69 anos também deve ser ofertado o rastreamento.
Investigações de doenças da próstata devem ser consideradas em travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas conforme recomendado para homens cis. Mas é importante lembrar que o câncer de próstata não deve ser rastreado na população em geral.
Referências
BOURNS, A. et al. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients. 4. ed. Toronto: Sherbourne Health Centre, 2019. Disponível em:<http://www.transforumquinte.ca/downloads/Guidelines-and-Protocols-for-Comprehensive-Primary-Care-for-Trans-Clients-2019.pdf>.
PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, 2006. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf.
SÃO PAULO (Município). Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo. 2a ed. Versão preliminar em consulta pública – atualizada em 27 de abril de 2023. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde, 2023. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/Protocolo_Trans_Travesti_Viv_variab_genero_2a_ed2023.pdf