A conferência mundial promovida pela World Organization of Family Doctors (WONCA) em 2023 evidenciou alguns dos laços profundos que unem a medicina de família e comunidade global à saúde planetária. Realizada em Sidney, na Austrália, de 26 e 29 de outubro, também foi palco de momentos relevantes para a MFC no Brasil.
Mereceram destaque, por exemplo, os consistentes estudos do brasileiro Enrique de Barros, professor na Universidade Feevale, médico de família e comunidade no interior do Rio Grande do Sul e gerente de Inovações e Equidade em Saúde no grupo de trabalho de saúde planetária do WONCA. Em conjunto com profissionais do mais elevado nível, como a espanhola María Neira, chefe do Departamento de Saúde Pública, Meio Ambiente e Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), ele participou da concepção de um abaixo-assinado levado a debate na conferência na Austrália com análise aprofundada dos danos causados ao bem-estar humano pelas alterações do clima.
A propósito, essa carta aberta, inspirada em peças da OMS, recebeu o apoio e assinaturas de 39 organismos de saúde globais, representando três milhões de profissionais em todo o mundo. Ela demanda dos governos de todos os países investimentos em energia renovável, justiça climática e transição equitativa para o abandono da produção de combustíveis fósseis.
“Apelamos aos líderes mundiais que tomem medidas urgentes para salvaguardar a saúde das populações globais da crise climática”, registra o documento, ressaltando que as emergências médicas por ela desencadeadas têm crescido entre os pacientes.
“Fui convocado pelos organizadores para conduzir juntamente com a dra. Maria Neira o keynote address de 28 de outubro, isto é, a principal palestra do dia. Com isso, o abaixo-assinado chamou atenção para a tribulação ambiental que temos vivido. Levamos um ano para prepará-lo”, conta o dr. Enrique.
As milhões de assinaturas recebidas pelo documento e mais ainda a relevância de seu conteúdo chamaram a atenção de órgãos de imprensa conceituados mundialmente. Houve intensa cobertura das principais redes de televisão australianas, além de reportagem publicada no britânico The Guardian.
A tradicional mídia da Inglaterra frisa o alcance da iniciativa, que tem, entre seus signatários, organismos de saúde do Canadá, da Índia, da Europa, do Reino Unido e de nações do Pacífico.
Palestra
Já a palestra encabeçada por Enrique ocorreu no terceiro dia de atividades focando igualmente a saúde planetária, tema frequentemente debatido na Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Cerca de 4.000 participantes compraram a mensagem “One minute for the planet”, ou “Um minuto para o planeta”, título da apresentação.
Enrique defendeu a tese de que a boa médica e o bom médico de MFC já é um médico verde e de saúde planetária.
“Trabalhando com evidências científicas, cuidando bem das pessoas, buscando equidade em saúde, promovendo a prevenção de enfermidades, evitamos o gasto desnecessário de recursos e poluímos menos. Afinal, alguém que adoece e vai para o hospital pode esgotar rios de dinheiro e produzir uma grande quantidade de gases de efeito estufa.”
Ele cita o – mau – exemplo da saúde nos Estados Unidos, onde os pacientes passam, muitas vezes, por um sem-fim de especialistas e nem por isso há um final feliz. Lá, anualmente, 800 mil indivíduos morrem ou ficam com sequelas causadas por erros de diagnóstico, números que podem ser reduzidos por políticas de atenção primária.
“As médicas e médicos de família e comunidade, por serem bastante conhecidos em suas regiões, orientam os pacientes em diferentes esferas do cotidiano, incentivando, por exemplo, a reduzir o uso do carro e o consumo excessivo de carne, a praticar exercícios físicos e tomar sol para arrefecer os sintomas depressivos. No fim das contas, tudo isso impacta de maneira positiva o meio ambiente e a saúde.”
Embora os governos dispensem grandes esforços quando ocorrem catástrofes como enchentes e secas prolongadas, Enrique sublinha que são os profissionais das equipes de saúde de família e comunidade que permanecem ao lado das populações atingidas quando a comoção arrefece e as câmeras vão embora.
“A mídia não costuma noticiar, mas é apenas um, dois, três anos após os acontecimentos que os problemas mais silenciosos e graves se manifestam. Dados consistentes apontam que os casos de diabetes, infarto, AVC e até mesmo suicídio crescem assustadoramente nos locais dos desastres.”
“Não é para menos: as comunidades são destruídas, aumenta o contato com agentes transmissores de doenças, as pessoas perdem seus entes queridos, suas casas, seus empregos, seu pão, ficam ansiosas e deprimidas, começam a consumir alimentos mais baratos, ultraprocessados. Logo vêm as alterações no açúcar, na pressão, e sem um atendimento cotidiano digno para cuidar das condições que se acumulam, sucedem as mortes”, explica, destacando a importância de “enverdecer”.
Prestígio
Vale registrar por fim que Enrique recebeu a distinção Fellowship, o maior prêmio da World Organization of Family Doctors, concedido àqueles que prestam serviços relevantes, A honraria deu-se em reconhecimento a uma década de dedicação à consolidação dos conceitos de saúde planetária dentro da WONCA. É o que também faz na SBMFC.
“Nada disso seria possível sem o Andy Haines, um dos fundadores do grupo do qual participo. Ele é considerado o vigésimo maior cientista do clima, o autor que mais escreve sobre saúde e mudanças climáticas no mundo. Ou sem o Alan Abelsohn, médico de família e comunidade que atua na Universidade de Toronto e no nosso grupo”, ressalta.