Peço licença a Fernando Brant, compositor, e a Milton Nascimento, intérprete, parar começar o artigo parafraseando a célebre canção “Nos bailes da vida”. Os mineiros cantaram que “todo artista tem de ir aonde o povo está”, e eu acrescento que os profissionais da saúde, meus caros, também. Neste outubro, Mês do Médico, é sobre isto que quero falar: os caminhos que precisamos percorrer e o que temos a ofertar à nossa população.
Extraí o título deste artigo (Uma saúde forte tem de estar onde o povo está) do meu discurso na abertura do 17° Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade (CBMFC), que aconteceu em Fortaleza, entre os dias 20 e 23 de setembro, e entrará para os anais da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Milhares de pessoas se reuniram, entre médicas e médicos, gestores da saúde pública e privada, professores, integrantes de movimentos sociais e representantes dos governos federal, estadual e municipal, todas movidas pelo compromisso com a assistência de qualidade, com a diversidade humana e com a preservação do planeta.
Foi bastante comentado o “abraçaço” que realizamos na ocasião. O contato estreito entre os congressistas, afinal, nos fazia falta. Em 2021, em edição híbrida, muitos optaram por participar somente à distância, dada a cautela que o período pandêmico exigia. Retornar ao medo presencial, ao toque e à convivência calorosa era um desejo já expresso no logo do Congresso: dois braços enlaçando o mapa do Brasil.
Os tempos de Covid, aliás, ressaltaram ainda mais o papel da Medicina de Família e Comunidade (MFC) como eficaz coordenadora e ordenadora do sistema de saúde. Desde 2020, evidenciou-se ainda mais o potencial da Atenção Primária à Saúde (APS), por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), como um pilar fundamental na resposta a emergências de saúde pública.
A abordagem preventiva, centrada na comunidade e no paciente, que é uma das premissas da MFC, se mostrou indispensável na identificação precoce de casos, na promoção de medidas de prevenção e na conscientização das brasileiras e dos brasileiros, a despeito dos retrocessos. Também asseguramos, priorizando a equidade na distribuição de recursos e cuidados, que mesmo os lugares mais distantes dos grandes centros urbanos tivessem acesso aos serviços de saúde.
A propósito de geografias e falta de acesso, permito-me contar a história de uma criança que nasceu no interior do Espírito Santo, em uma cidade a cerca de quatro horas da capital. Vendo que não cessavam as infecções de ouvido e garganta da menina, sua mãe a tomou nos braços, pegou um ônibus de madrugada, rumo a Vitória, e se dirigiu a um centro de especialidades para que a filha recebesse os cuidados necessários. Os médicos, logo concluindo que ela precisava retirar as amigdalas, submeteram-na à cirurgia. A menina teve uma parada cardiorrespiratória, mas foi ressuscitada e devolvida à mãe, porque não havia leitos de internação disponíveis naquele momento.
Se houvesse ao lado delas uma médica ou um médico de família, os profissionais, perceberiam que a pequena era intolerante a lactose, e que beber o leite que chegava todos os dias, trazido à porta da casa por uma charrete, a levaria a desenvolver um refluxo gastroesofágico e, por consequência, otite e amigdalite de repetição.
Abrindo o coração: essa é a minha história, sou eu a criança que poderia ter morrido; a criança que poderia ter sido salva pela especialidade à qual hoje me dedico.
Somos especialistas em pessoas. Conhecemos em que parte moram, como vivem, com o que trabalham, quanto ganham, onde dói, a quais violências estão submetidas, o que influencia o seu bem-estar.
Tudo isso, é claro, faz muita diferença quando nos propomos a ajudá-las com seus problemas. Insisto, portanto, que precisamos de políticas públicas que induzam a formação de MFCs. Em parceria com o Ministério da Saúde e com o Ministério da Educação, é o que nós, da SBMFC, temos tentado fazer, especialmente pesando o programa Mais Médicos. Mais do que um provimento emergencial, planejamos uma formação a médio e longo prazo de especialistas com qualidade e em quantidade para o atentimento a todas as regiões do Brasil.
De acordo com a Demografia Médica no Brasil 2023, estudo produzido em parceria entre a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), somos atualmente em torno de 7 mil profissionais em atividade; outros levantamentos apontam 11 mil. Seja como for, é um número aquém do necessário – deveriamos ser ao menos 100 mil. Hoje, a média nacional de Medicina de Família e Comunidade é de apenas 5,54 para 100 mil habitantes, sendo que 15 estados estão abaixo dela.
Um amanhã com mais médicas e médicos de família e comunidade é um amanhã com a atenção primária fortalecida; com assistência abrangente e integrada; com a redução das disparidades em saúde; com pacientes engajados em práticas saudáveis, menos propensos a desenvolver doenças evitáveis; com custos de saúde reduzidos e alívio para os cofres públicos; com detecção precoce e resposta eficiente a emergências globais. Temos tanto a oferecer e tanto por fazer. Ainda há tempo.
Feliz 18 de outubro, o Dia dos Médicos, a todas e todos os meus colegas e a nossos pacientes. Seguimos atentos e fortes!
Zeliete Zambon
presidente da SBMFC