“É fundamental que nossos pares assumam o protagonismo em medicina e saúde”
A Medicina de Família e Comunidade (MFC) é uma especialidade de inserção 100% centrada em gente. No dia a dia, nossas médicas e médicos respondem pela atenção primária em unidades de todo o país, primando pela competência e resolutividade. Eles ainda realizam assistência em domicílio e empreendem estudos populacionais visando a construir indicadores confiáveis para equacionar as necessidades de saúde das pessoas.
A presidente da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC), Zeliete Linhares Leite Zambon, assevera que a médica e o médico de família e comunidade (MFCs) fazem toda a diferença na e quanto à qualidade de vida dos brasileiros. Aliás, na prática, tratam de saúde de todos nós desde os estudos populacionais e a gestão dos cuidados
“Ser MFC é um privilégio. Assim, é fundamental que nossos pares assumam o protagonismo em medicina e saúde. Devemos, porque temos construção para isso, manter sempre a cabeça erguida e nos posicionar: seja no ensino, na pesquisa, na formação, na política, além de na organização de saúde no público e privado. Nossa especialidade é plural. Temos ferramental e argumentos para dialogar com todos, sempre em prol da população”.
Zeliete lembra que a atenção primária conta somente com 10 mil médicos, enquanto o mínimo necessário seria de 70 mil. Nesse contexto, a SBMFC compreende ser indispensável a injeção de investimentos à área, com vistas a ampliar a malha de atendimento e qualificá-lo continuamente, além de valorizar os MFCs, priorizando a estratégia de saúde à família e estimulando a formação de alto nível e a especialização.
A propósito, ela defende a revogação da lei que congelou os investimentos de saúde por 20 anos e que há oito deixa o sistema engessado. Confira, a seguir, entrevista especial com a presidente da SBMFC.
Qual o impacto da crise brasileira na medicina de família?
Temos de solucionar a defasagem de 60 mil profissionais na especialidade. Países como Portugal, Espanha e a própria Inglaterra investiram na formação e na capacitação. Assim, equacionaram seus sistemas. Quando conseguirmos isso aqui, estaremos em condição para resolver 85% dos problemas de saúde. Estudos registram que outros 14% são da atenção secundária e 1% de casos de internação.
Esse é o principal gargalo que trava a assistência qualificada?
Um dos muitos. Cada vez mais, a gente só consegue atender as pessoas que comparecem às unidades, pois há falhas estruturais: os investimentos em saúde estão congelados; as unidades com carência de equipamentos, recursos humanos e ferramental para atendimento. Em nosso dia a dia na linha de frente, muitas vezes, quando uma pessoa finalmente consegue chegar para receber assistência, já não é mais possível resolver no campo primário, na unidade. A agravante é que, se esse paciente não é atendido no nível secundário, vai para a internação, para a atenção terciária. É um vício sistemático: gestão equivocada, menos soluções, mais gastos.
Há uma saída a curto prazo para a gestão em saúde?
É difícil. Aliás, não podemos passar para a população versão de que será fácil. Não será. Precisamos da reconstrução do sistema de saúde, a situação é bem grave. Nesse contexto, aumenta ainda mais a responsabilidade e a importância da MFC. Aliás, os MFCs têm de estar à frente das instâncias de gestão em saúde. Devemos integrar, opinar e ter voz decisória nas coordenações do sistema. É o processo natural e racional, afinal, desempenhamos a atenção primária, construímos dados populacionais, conhecemos as carências e necessidades da população.
O que esperar do próximo governo?
O principal desafio é obter verba para a saúde. Outro ponto essencial é investir na atenção primária, inclusive como protagonista do sistema de gestão. É da maior relevância priorizar a formação em MFC, além de outras especialidades em que há carência para a assistência.
SBMFC foi convidada para recente reunião do grupo de transição da saúde do novo governo. Por favor, como foram os debates?
Fizemos uma ponderação para reflexão entre o grupo de transição: a saúde é 100% relacionada com a economia. As pessoas precisam comer, ter acesso a condições básicas de sobrevivência. No Brasil registramos 62 milhões de pessoas — ou 29,4% da população — na pobreza em 2021, considerando parâmetros do Banco Mundial. De acordo com o levantamento divulgado em 2 de dezembro, ou seja, dias atrás, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é o maior índice desde o início da série, em 2012. A realidade é essa: sem equilíbrio, com fome e miséria, não há um povo saudável.
De que forma a MFC pode interferir para resgatar o equilíbrio no campo da saúde?
Nossa especialidade preza justamente por esse equilíbrio em suas ações diárias. Busca detectar os problemas socioeconômicos desde suas raízes. Na atenção primária, o médico, em sinergia com a equipe de saúde da família, é o primeiro contato.