Aborto como direito pós-violência

2 de dezembro de 2020

Texto número 11 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs. 

Em todo o mundo, cerca de 90 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivem em países que não permitem o aborto em qualquer circunstância, incluindo casos de violência sexual (1). No Brasil, apesar de previsto no Código Penal2 desde 1940, é possível descrever uma longa – e ainda incompleta – trajetória para a efetivação do direito à interrupção da gravidez decorrente de estupro. Praticamente meio século após a promulgação do Código Penal, em 1989, inaugurou-se o primeiro serviço de aborto legal no país, e somente dez anos depois foi publicada a primeira norma técnica, que estimulava e estabelecia as condições para abertura e funcionamento de novos serviços (3,4)

No cenário internacional, cabe destacar algumas conferências importantes das quais o Brasil é signatário: Viena (1993) (5), marco fundamental para a defesa da igualdade de gênero e dos direitos humanos das mulheres, além de Cairo (1994) e Pequim (1995) (6), que deram grande visibilidade aos direitos reprodutivos. A Conferência de Cairo, ao delimitar as ações necessárias para alcançar uma redução expressiva da morbi-mortalidade materna, especialmente nos países em desenvolvimento, não deixa margem a qualquer dúvida: “Em circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, esse aborto deve ser seguro”. 

De acordo com a norma técnica brasileira, a narrativa da mulher é condição suficiente para o acesso à interrupção legal da gravidez decorrente de estupro, que deve ser realizada de modo gratuito nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, ainda hoje convivemos com uma variedade de obstáculos para a efetivação deste acesso: a escassez de serviços que realizam o procedimento configura uma barreira geográfica; a exigência de documentos desnecessários, como o boletim de ocorrência, uma barreira administrativa; e as barreiras morais são representadas pela suspeição sobre a narrativa da mulher e alegação de objeção de consciência por parte dos profissionais (3,7).

Uma pesquisa nacional (3) publicada em 2015 revelou que, dentre os serviços pesquisados, menos da metade das 5075 mulheres que requisitaram o aborto legal tiveram o procedimento realizado. Apesar dos motivos não terem sido investigados, o dado chama a atenção. Infelizmente, não são incomuns as situações de violação deste direito reprodutivo das mulheres usuárias do SUS, constantemente já vulnerabilizadas por outros tantos condicionantes. Cabe ressaltar que a objeção de consciência é uma prerrogativa dos profissionais, mas não das instituições como um todo, que deveriam resguardar o direito das mulheres e efetivar o dever do Estado de garantir o aborto previsto em lei. 

A Atenção Primária à Saúde tem um importante papel na assistência a mulheres vítimas de violência sexual, podendo desempenhar ações que vão desde a prevenção da gravidez decorrente de estupro e detecção de situações elegíveis para aborto legal que não se apresentam de forma clara, até o encaminhamento responsável a serviços especializados e acompanhamento pós-alta com prestação de cuidados integrais (8). Ademais, considerando a relação histórica deste nível de atenção à saúde com princípios de justiça social e centralidade nas necessidades das pessoas, os profissionais deste campo ganham especial relevância na defesa dos direitos reprodutivos no atual contexto, em que se observam diversas tentativas de restrição ou eliminação dos direitos das mulheres (9).  

Por Melanie Noël Maia –  http://lattes.cnpq.br/3054074451725081

Instagram: @melnoelmaia 

Referências: 

  1. Center for Reproductive Rights. The World’s Abortion Laws Map [Internet]. 2020 [citado 6 de junho de 2020]. Disponível em: https://reproductiverights.org/worldabortionlaws
  2. Brasil. Presidência da República. Código Penal [Internet]. Decreto-Lei No 2.848, de 7 de Dezembro de 1940 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
  3. Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional. Ciênc Saúde Coletiva. fevereiro de 2016;21(2):563–72.
  4. Brazil, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 2011.
  5. Organização das Nações Unidas. Report of the World Conference on Human Rights, Vienna [Internet]. 1993 [citado 12 de novembro de 2020]. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G93/142/33/PDF/G9314233.pdf?OpenElement
  6. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres [Internet]. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; 2006. Disponível em: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes/outros-artigos-e-publicacoes/instrumentos-internacionais-de-direitos-das-mulheres/at_download/file
  7. Diniz D, Dios VC, Mastrella M, Madeiro AP. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Rev Bioét. agosto de 2014;22(2):291–8.
  8. Giugliani C, Ruschel AE, Belomé da Silva MC, Maia MN, Pereira Salvador de Oliveira DO. O direito ao aborto no Brasil e a implicação da Atenção Primária à Saúde. Rev Bras Med Fam E Comunidade. 23 de fevereiro de 2019;14(41):1791.
  9. Maia MN. Oferta de aborto legal na Atenção Primária à Saúde: uma chamada para ação (no prelo). Rev Bras Med Fam E Comunidade.