SBMFC entrevista Maria Inez Padula

30 de outubro de 2020

Maria Inez Padula Anderson é médica de família e comunidade, mestre e doutora em Saúde Coletiva pela UERJ, Professora Adjunta do Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária – DMIF (FCM/UERJ). Coordenadora da Residência Medicina de Família e Comunidade da FCM/UERJ.
 
Foi presidente da SBMFC nas gestões 2004/2006 e 2006/2008. Atuou como presidente da Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar CIMF/WONCA  entre 2013 e 2018. É diretora científica da SBMFC. 
 
 
SBMFC: Como é estar de volta à diretoria da SBMFC, após algumas gestões na presidência e vice-presidência?
Maria Inez: De fato, neste momento da minha vida, não tinha mais intenção de estar neste tipo de função, seja na diretoria da SBMFC ou da CIMF. Estar de volta, neste contexto, representou e representa um movimento – do qual faço parte – de promover, qualificar e valorizar uma Medicina de Família e Comunidade e de uma Atenção Primária à Saúde com todas as letras nos sistemas de saúde. O que também  implica na clara defesa por um SUS público, de qualidade, para toda a população brasileira, independentemente da classe social. A união de forças em torno destas ideias, conformou um processo onde pessoas – MFCs de todo o Brasil – se encontraram. Neste sentido, apesar de a ideia inicial ter sido somente colaborar neste movimento, estar neste lugar e fazer parte, no seio da Diretoria, da (re)construção desta história, passou a constituir uma possibilidade concreta, mais uma vez.
 
SBMFC: A senhora já foi presidente da Confederación Iberoamericana de Medicina Familiar (Cimf). Conte sobre o panorama da especialidade na região?
Maria Inez: A Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade especial, complexa e  essencial aos sistemas de saúde, mas é contra-hegemônica, apesar da sua eficácia, eficiência e efetividade. A MFC traz para o centro do processo da atenção em saúde, as pessoas, as famílias e as comunidades e, neste sentido, seu foco são as relações e os fatores que se estabelecem entre e nestes contextos e que afetam a saúde e o processo saúde adoecimento de cada um de nós. Vivemos, ainda no mundo da ciência cartesiana, de tentar simplificar questões complexas, objetivando a ação pontual e as tecnologias duras em saúde em detrimento das relacionais, o que tem significado dispêndio de recursos e piores resultados em saúde, no mundo todo, mas especialmente nos países onde não temos uma Atenção Primária à Saúde desenvolvida.
 
Lidamos com a falta de conhecimento e reconhecimento do valor da Atenção Primária à Saúde, por parte dos gestores em saúde e educação e, isto afeta o crescimento e a valorização da especialidade que necessita de políticas de estado para vencer o grande gap trazido pelo modelo biomédico e o crescimento desenfreado das sub-especialidades na área da saúde. Este processo, se relaciona com o crescimento – e é retro-alimentado por ele – do complexo médico-industrial, que em última análise, concretiza uma visão mercadológica da saúde, considerando-a um bem de consumo e, neste sentido, um bem de mercado.  Então, respondendo à pergunta, o panorama que vejo da MFC na América Latina é de se superar a cada dia, lidando com estes desafios, e se mantendo no caminho de construir uma possibilidade de cuidado em saúde, diferenciado e essencial, sob a lógica do paradigma complexo. Como disse, McWhinney, a MFC pode liderar este processo, pois, neste caminho, está alguns passos à frente da maioria das especialidades médicas. Neste sentido, a MFC da América Latina, em especial, tem muito a mostrar e a oferecer às pessoas e aos sistemas de saúde.
 
SBMFC: Hoje, temos a segunda mulher na presidência da SBMFC. Como a senhora entende a importância dessa representatividade?
Maria Inez: Em 40 anos de história, somente uma mulher, tivemos na presidência da SBMFC. Penso ser coerente com a essência da MFC e, portanto, da SBMFC, cuidar da equidade em todas as suas ações. Embora equidade não seja sinônimo de igualdade, é um movimento significativo buscarmos a equidade, também, através da igualdade de representatividade entre os sexos, gêneros, raças, religiões, classes sociais.
 
 
 
 
SBMFC: A Diretoria Científica tem a atribuição de atuar junto aos Grupos de Trabalho. Como a senhora enxerga o papel dos GTs na SBMFC?
Maria Inez: O Grupos de Trabalho são espaços importantes de produção em um Sociedade Científica.  Na SBMFC, a maioria dos GTs se constituiu mais recentemente, nos últimos quatro anos e, como todas as ações e atividades deste tipo, necessita de cuidado e ajustes, visando seu desenvolvimento e aperfeiçoamento progressivo. Muitos boas contribuições destes GTs têm sido feitas no decorrer deste período para a SBMFC e a MFC como um todo.Nestes primeiros meses de gestão, tenho buscado conhecer um pouco mais do modus operandi dos grupos – que são distintos – procurando interferir pouco neste processo. Além disso, com a contribuição dos GTs, estou desenhando um perfil de cada grupo, com base em características de funcionamento que, penso, poderá ajudar a elaborar um planejamento de ações mais orgânico, envolvendo a Diretoria e os GTs. Espero que nas próximas semanas, possamos caminhar neste sentido.
 
SBMFC: Os congressos organizados e apoiados pela Sociedade tem uma grade científica robusta e diferenciada das demais especialidades. Acredita que esse seja um dos motivos da grande procura e demanda por eventos?
Maria Inez: Sem dúvida, os Congressos organizados pela SBMFC se destacam pela riqueza de temas e de tipos de atividade. Além disso, considerando que somos uma especialidade capilar nos sistemas de saúde, os congressos representam um momento único e especial para o encontro, a convivência e as trocas de afeto, que também são essenciais em nossa especialidade. Aproveito para convidar a todas e todos para o nosso 16o Congresso que acontecerá junto com o 7o Congresso Iberoamericano de Medicina Familiar, de 18 a 21 de agosto de 2021, em Vitoria, Espírito Santo. Há muito tempo, não necessitamos tanto de estar perto e conviver, como agora. Acesse o site: https://mfc2021.com.br/.
 
SBMFC: Como a diretoria irá utilizar a ciência em benefício da sociedade como um todo?
Maria Inez:Penso que a função principal da ciência, inclusive na área da saúde, é contribuir para que os seres humanos possam viver e desfrutar a plenitude da vida na sua melhor forma física, emocional e existencial. Isto significa identificar fatores e processos que interfiram negativamente para o alcance destes objetivos, buscando modelos explicativos por um lado mas, especialmente, buscando respostas e ações para a superação e o enfrentamento destes desafios.
 
Neste campo, a MFC e a APS têm grande responsabilidade pois são testemunhas da vida e da qualidade de vida das pessoas, conhecendo de perto os preconceitos, as dificuldades impostas pelo modo de produção do trabalho, as violências de todos os tipos que sofrem a população brasileira, especialmente as que têm sido mais vulnerabilizadas, como os negros e as negras, as mulheres, os indígenas, a população LGBTI+, os mais pobres, as crianças, os mais velhos. Um outro aspecto fundamental, é que a MFC com todas as letras e a APS são testemunhas também do efeito da destruição dos recursos da natureza, e o desrespeito com que temos lidado com nossa casa comum, a Mãe Terra, provoca nos seres vivos, além da própria Terra que também é um ser vivo.
 
Está ai a pandemia do COVID 19 que precisa ser entendida também neste contexto. Então, em relação à ciência, o esforço da Diretoria será neste sentido. E, para isso, precisamos trazer à tona o paradigma sistêmico no modo de entender, pensar e produzir ciência. Ele nos apresenta possibilidades e caminhos mais concretos para superar estes grandes desafios. Então, a ciência que a SBMFC poderá e deverá se dedicar a produzir será uma ciência que enfrente, lide e traga respostas e ações para estas questões, ou não será nada, parafraseando o querido Mario Acuña, (brilhante colega argentino que não está mais por aqui, fisicamente) que disse que a MFC será revolucionária ou não será nada.
 
SBMFC: Deseja compartilhar uma mensagem aos associados?
Maria Inez: Estamos vivendo tempos muito difíceis no Brasil e no mundo. Não só por causa da pandemia e tudo que ela tem afetado a vida de todos e todas nós. Muito antes dela, vimos construindo um modo de viver em sociedade que é patológico. Patológico porque afeta a saúde e impede a plenitude da vida dos seres humanos, em seu conjunto, e da própria sobrevivência da vida na Terra e de todos os seres vivos.
 
Como MFC, entendo que temos que buscar compreender as diferentes dimensões desta patologia e como ela afeta a cada um e uma de nós, como cidadãos e cidadãs, mas especialmente como especialistas e profissionais de saúde. Qual será nossa atitude e ação frente a esta patologia? Se nos unirmos, a visão e o entendimento ficarão mais claros. Estando e trabalhando em conjunto, pensaremos e teremos melhores respostas e seremos mais fortes.