Suicídio: é preciso imaginar um sísifo feliz

10 de setembro de 2020

Autoria:

Euclides Colaço Melo dos Passos, médico de família e comunidade, membro do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da SBMFC, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Preceptor voluntário – Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas.  

Caroline Naimeg da Mata , residente de Medicina de Família e Comunidade da Universidade Federal do Rio Grande FURG e membro do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da SBMFC. 

 

O desafio de entender o suicídio e a importância do olhar crítico sobre as campanhas de prevenção

 A ideia do Setembro Amarelo surgiu, em 2015, no Brasil, inspirada pela história de Mike Emme, um jovem americano, que em 1994, tirou a própria vida em seu Mustang 1968 amarelo. Durante o funeral, familiares e amigos distribuíram mensagens, em um cartão amarelo, de apoio às pessoas que estivessem enfrentando algum tipo de sofrimento psíquico[1].

Deve-se ter em mente que o fenômeno do suicídio é algo complexo, multide- terminado, constituído por um conjunto de fatores biopsicossociais. Compreender o suicídio é um desafio que não pode ser simplificado[2][3].

Vale ressaltar que falar de saúde mental e de prevenção ao suicídio apenas em tempos do “Setembro Amarelo” soa como uma minimização do sofrimento, em especial, das populações mais vulneráveis. Além de que, ainda é importante se ter um olhar crítico frente às campanhas, no que tange a possíveis interesses corporativistas e da indústria farmacêutica na “patologização” do sofrimento humano. Lembrando-se da importância de se promover o acolhimento adequado das pessoas em sofrimento mental em todas as épocas do ano e em todas as instituições de saúde, com enfoque à capacitação dos profissionais da atenção primária, que estão mais próximos das realidades das comunidades e dos indivíduos. Atentar para os riscos de suicídio faz parte de um cuidado amplo da saúde mental, como é proposto o cuidado na Atenção primária à Saúde (APS)[4].

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que o suicídio re- presenta 1,4% de todas as mortes no mundo, sendo a 15.ª causa de mortalidade na população geral e a segunda na faixa etária dos 15 a 29 anos. Cerca de 79% dos suicídios no mundo ocorrem em países de baixa e média renda[5]. A cartilha: Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, lançada pelo MS, mostra que entre 2012 e 2016 o número de casos com pessoas brancas permaneceu estável, enquanto o das negras aumentou 12%[6]. O Brasil está como a 3.ª maior causa de morte na faixa etária entre 15 e 44 anos é a 6ª maior causa de incapacitação. No contexto nacional, são registrados cerca de 12 mil suicídios todos os anos. Cerca de 96% dos casos de suicídio estavam relacionados a transtornos mentais: depressão, seguida do transtorno afetivo bipolar, abuso de substâncias psicoativas, esquizofrenia dentre outros[6][7].

Além disso, vale observar como o Suicídio afeta populações mais vulneráveis de formas mais intensas. Estudos apontam que adolescentes LGBT são cinco vezes mais propensos a tentar suicídio do que os heterossexuais. Fatores como a não aceitação da sexualidade pelo próprio indivíduo, por sua família e a homofobia perene na sociedade são fatores apontados como fatores de risco. Em contraponto, adolescentes que vivem e estudam em locais que aceitam melhor gays e lésbicas têm 25% menos probabilidade[8][9][10].

Outro grupo populacional extremamente vulnerável e que carece de especial atenção está nos povos indígenas. Segundo Conselho Indigenista Missionário, os casos de suicídio entre as populações indígenas no Brasil cresceram entre 2016 e 2017 cerca de 20%, sendo os jovens, as principais vítimas. No ano de 2018, 101 casos de lesões auto inflingidas/ suicídios foram registradas. Como ocorre juntamente aos casos de Suicído/ lesões auto inflingidas como um todo, este item sofre com      a subnotificação[2][11].

O estigma em relação ao tema impede a procura de ajuda, o que poderia evitar mortes, além de dificultar um entendimento melhor sobre a temática. Da mesma forma, sabe-se que abordar o fenômeno do suicídio de forma responsável (sem alarmismo ou espetacularização) opera mais como um fator de prevenção que como fator de risco[4, 7].

Com relação à intencionalidade suicida, a motivação da pessoa nem sempre  é a morte. Há vários mecanismos mentais que motivam alguém ao ato. Então, num primeiro momento, o indivíduo muitas vezes expressará o fator desencadeante último, mas é importante que os profissionais estejam abertos, sejam sensíveis e empáticos para tentar entender e reconhecer onde está doendo, o que de fato tem se passado na história dessa pessoa[4].

Ainda em 2020 existem barreiras a serem superadas na abordagem a pessoas nesse nível de sofrimento: crenças errôneas, tabus, julgamentos. O medo de perguntar e não saber o que fazer, principalmente, dos profissionais de saúde, que por não saberem lidar com a situação, preferem se esquivar do envolvimento com certo receio de “sentirem-se responsáveis por dar a ideia ao sujeito”, por isso, optam pela omissão frente a uma situação de risco.

 

COMO AJUDAR A PESSOA COM RISCO DE SUICÍDIO?

Neury Botega criou um interessante mnemônico para auxiliar no suporte a pessoas em risco de suicídio: ROC.[12][13]

R: REPARE NO RISCO:

Sinais para procurar na história de vida e no comportamento das pessoas:

  • Comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com a família e amigos;
  • Doença psiquiátrica;
  • Alcoolismo;
  • Ansiedade ou pânico;
  • Mudança na personalidade, irritabilidade, pessimismo, depressão ou apatia;
  • Mudança no hábito alimentar e de sono;
  • Tentativa de suicídio anterior;
  • Odiar-se, sentimento de culpa, de se sentir sem valor ou com vergonha;
  • Uma perda recente importante – morte, divórcio, separação, etc;
  • História familiar de suicídio;
  • Desejo súbito de concluir os afazeres pessoais, organizar documentos, escrever um testamento, etc;
  • Sentimentos de solidão, impotência, desesperança;
  • Cartas de despedida;
  • Doença física;
  • Menção repetida de morte ou suicídio.

O: OUVIR – SEM JULGAR, SEM PRESSA, SEM ACEPÇÕES MORAIS:

Achar um lugar adequado onde uma conversa tranquila possa ser mantida com privacidade razoável. O próximo passo é reservar o tempo necessário. Pessoas com ideação suicida usualmente necessitam de mais tempo para deixarem de se achar um fardo e precisa-se estar preparado mentalmente para lhes dar atenção. A tarefa mais importante é ouvi-las efetivamente. “Conseguir esse contato e ouvir é por si só o maior passo para reduzir o nível de desespero suicida.”

 

Como se comunicar:

  • Ouvir atentamente, ficar
  • Entender os sentimentos da pessoa (empatia).
  • Dar mensagens não-verbais de aceitação e
  • Expressar respeito pelas opiniões e valores da
  • Conversar honestamente e com
  • Mostrar sua preocupação, cuidado e afeição.
  • Focalizar nos sentimentos da

Como não se comunicar:

  • Interromper muito
  • Ficar chocado ou muito
  • Dizer que você está
  • Tratar o paciente de maneira que o coloca numa posição de
  • Fazer comentários invasivos e pouco
  • Fazer perguntas

 

C: CONDUZIR A UMA ASSISTÊNCIA:

Auxiliar a pessoa a chegar a uma assistência adequada para a abordagem da crise. Nesse quesito, ainda é importante que se pense em fortalecer e equipar a rede de saúde mental no Brasil mais homogeneamente, visto que nem todos os municípios possuem suporte e estruturas adequadas para receber a demanda em saúde mental. Nesse contexto, também verificamos a importância de capacitar os profissionais da atenção primária para auxiliar com precisam no primeiro contato a esses usuários e a identificar os indivíduos de maior risco.

Por fim, conforme discutido no ensaio filosófico sobre o mito de Sísifo, de Albert Camus, o homem vive sua existência em busca de sua essência, do sentido da vida, mas encontra um mundo desconexo, cruel e guiado por entidades sociais e ideológicas sufocantes[14]. Nesse ponto, conclui-se que a solução em não encontrar um sentido na vida não deveria ser o suicídio, mas sim a revolta. Todavia, o grande desafio é transformar em revolta criativa o que antes se mostra como um convite ao suicídio. Talvez, esse seja o grande papel dos profissionais de saúde, tentar levar as pessoas a esse entendimento na busca e compreensão de si mesmas e no enfrentamento diário das “pedras” que precisam deslocar apresentadas diante de seus caminho.

 

Referências: 

  1. A campanha Setembro Amarelo® salva vidas!, 2020. URL https:// www.setembroamarelo.com/.
  2. CFM e ABP comemoram Política para Prevenção da Automutilação e do Suicídio, Maio/ 2019. URL https://portal.cfm.org.br/index.php?option= com_content&view=article&id=28196:2019-05-.
  3. SETEMBRO AMARELO, MÊS DE PREVENÇÃO DO SUICÍDIO, URL https://www.cvv.org.br/blog/setembro-amarelo-mes-de-prevencao-do-suicidio/.
  4. DEPARTAMENTO DE SAÚDE MENTAL – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. PREVENÇÃO DO SUICÍDIO: UM MANUAL PARA PROFISSIONAIS DA SAÚDE EM ATENÇÃO PRIMÁRIA. 2000. URL https://www.who.int/mental_health/ prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdf.
  5. OPAS-Brasil. Folha     Informativa      –    Suicídio.           Agosto               URL https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id= 5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839.
  6. Ministério da Saúde and Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Depar- tamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros. Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jo- vens Negros, 2018. ISSN 978-85-2672-6. URL http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf?fbclid= IwAR1JvKQIuNZNIT6s_XKYEm6OiAUWfWH1toENITr1xUB1TjV_wlWCeA1iBIM.
  7. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde Superinten- dência de Atenção Primária. Avaliação do risco de suicídio e sua prevenção. Guia de Referência Rápida: Avaliação do risco de suicídio e sua prevenção, ISSN 978-85-86074-61-5.
  8. BRUNO BRANQUINHO Suicídio da população LGBT: precisamos falar e escu- tar. Carta Capital, Agosto 2019. URL https://www.cartacapital.com.br/blogs/ suicidio-da-populacao-lgbt-precisamos-falar-e-escutar/.
  9. Nicholas A. Livingston, Nicholas Heck, Annesa Flentje, Hillary Gleason, Kathryn M. Oost, and Bryan N. Cochran. Sexual Minority Stress and Suicide Risk: Identifying Resilience through Personality Profile Analysis. Psychology of sexual orientation and gender diversity, 2(3):321 – 328, 9 2015. ISSN 2329-0382. URL https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4669214/.
  10. Shannon O’Donnell, Ilan H. Meyer, and Sharon Schwartz. Increased Risk of Suicide Attempts Among Black and Latino Lesbians, Gay Men, and Bisexuals. American Journal of Public Health, 101(6):1055 – 1059, 6 ISSN 0090-0036. URL https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3093285/.
  11. Conselho Indigenista Missionário (CIMI).  Violência  contra  os  Povos  Indígenas   no   Brasil   –   Dados   de       Violência   contra   os   Po-     vos Indígenas no Brasil – Dados de 2018, 2018. ISSN 1984- 7645.      URL   https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2019/09/relatorio- violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2018.pdf.
  12. Neury José Botega. Crise suicida.
  13. Neury José Botega: Comportamento suicida da biologia ao desespero. Vídeo on-line, 13/12/2018. URL https://www.youtube.com/watch?v=_-DziwsHkZY&t=1122s. access e 05/09/2020.
  14. Albert Camus. O Mito de Sísifo. BestBolso, Rio de Janeiro,