Artigo: Cem mil vidas não podem ser em vão

9 de agosto de 2020

Por Gulnar Azevedo, Jurema Werneck e Zeliete Zambon

Artigo publicado no jornal O Globo – confira a publicação original: https://glo.bo/3gJuNNA

Popularmente conhecido como o mês do desgosto, agosto de 2020 ficará para sempre na memória do Brasil. A história nos lembrará que nele, atingimos a triste e angustiante marca de 100 mil vidas perdidas para a Covid-19. Com cerca de 3% da população mundial, concentramos 14% dos óbitos registrados por Covid-19, ocupando o segundo lugar mundial nessa desonrosa competição.

Em maio, com dois meses da pandemia em curso no país, lançamos a campanha Nossas Vidas Importam. Uma iniciativa da Anistia Internacional Brasil, Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e mais 35 organizações e movimentos da sociedade civil, quando as vidas perdidas chegaram a quase 14 mil pessoas. Exigimos respostas urgentes e inclusivas das autoridades públicas para populações mais vulneráveis do país. Elas até agora não vieram.

A ausência de uma política nacional integrada a estados e municípios para enfrentamento da terrível crise sanitária agrava este cenário desolador. Por ignorância, negacionismo e crueldade, lideranças políticas vêm deliberadamente promovendo boicotes e obstáculos às medidas de combate à pandemia 

Quantas pessoas teriam um desfecho diferente no tratamento da Covid-19 se, desde o princípio, informações baseadas em evidências científicas fossem compartilhadas pelas autoridades e viralizassem nos celulares de brasileiros e brasileiras? Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal valorizasse e investisse todo o recurso destinado ao combate da crise de saúde, e não apenas 1/3 desse montante? Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se tivéssemos o Sistema Único de Saúde em toda sua potência, com maior protagonismo da atenção primária à saúde no enfrentamento juntamente à vigilância em saúde?

Ao contrário disso, o que vimos foi um descaso pelas vidas perdidas. Essa responsabilidade intransferível cai sobre a Presidência da República e sobre gestores públicos que por falta de coordenação e articulação não empregaram políticas emergenciais para controlar essa crise humanitária e reduzir seus impactos evitáveis.

Mas ainda é possível o Brasil tomar um outro rumo frente à Pandemia. Entidades científicas da saúde, bioética junto com o Conselho Nacional de Saúde elaboraram um Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, apresentado em audiência pública da Câmara dos Deputados em 4 de agosto. O documento traz uma leitura complexa da pandemia e ressalta que o direito à saúde não pode ser dissociado de outros direitos como o direito à moradia digna, ao saneamento básico, ao trabalho e ao acesso a medidas econômicas emergenciais.

Além do Plano proposto, há diversas parcerias efetivas entre gestões municipais e grupos científicos que têm apresentado resultados baseados em evidências científicas, e não em terapias que já se mostraram ineficazes.  E também a intensa mobilização de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, atuantes para que o Brasil não deixe ninguém para trás, para que cada vida seja valorizada e protegida.

Mudar o rumo da gestão dessa crise é imperativo. A demora em dar respostas contribui para outras perdas irreparáveis, para mais sofrimento e desolação. E ainda, para mais violações do direito de cada pessoa à saúde e à vida digna. Uma pandemia como esta aumenta vulnerabilidade social, aprofunda desigualdades econômicas, gera iniquidades em saúde e violações de direitos humanos, o que atinge diretamente grupos populacionais oprimidos e discriminados. Mas no final, o descaso e a incompetência da gestão afetam a todas e todos, ao conjunto da sociedade.

Por isso, seguimos na luta repetindo e alertando que Nossas Vidas Importam. As 100 mil pessoas perdidas para a Covid-19 importam.

*Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva); Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil; Zeliete Zambon, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade)