SBMFC entrevista GT de Ensinagem

10 de julho de 2020

*Por Julia Morelli Rosas, médica de família e comunidade, coordenadora do Grupo de Trabalho de Ensinagem da SBMFC e Murilo Sarno, médico de família e comunidade, coordenador do Grupo de Trabalho de Ensinagem da SBMFC. 

 

1) O que significa Ensinagem? Como o conceito se relaciona com a formação na Medicina de Família e Comunidade?

Ensinagem é uma prática social em educação entre professor e estudante, “englobando tanto a ação de ensinar quanto a de apreender” (ANASTASIOU; ALVES, 2004). Baseada na Teoria da Educação de Paulo Freire, que modifica o tradicional dar aula, de forma expositiva, com alunos que só ouvem e copiam, para um novo processo de construir o conhecimento em conjunto com os estudantes, através de diversas estratégias que procuram trazer o conhecimento teórico para sua correlação com os cenários práticos, de uma forma crítica e reflexiva.

2) O ensino da Medicina de Família e Comunidade idealmente se inicia na graduação: Como está atualmente a relação da MFC no ensino médico brasileiro? Num panorama geral, quais faculdades oferecem disciplinas relacionadas à Medicina de Família e Comunidade?

Ainda há desafios para a implantação de disciplinas ou unidades curriculares que dialoguem com a especialidade de MFC nos primeiros anos da graduação, especialmente em cursos com currículo tradicional. Em cada escola, as articulações entre saúde coletiva e medicina de família e comunidade, somadas às contingências de financiamento, cenários de prática e disposições individuais produziram as mais diversas soluções curriculares para o ensino nos primeiros anos da graduação. Exemplos de arranjos curriculares são: visitas à unidades de saúde da família, guiadas por professores de saúde coletiva,  onde se busca condensar os ensinamentos sobre determinantes sociais de saúde, princípios do SUS e funcionamento do sistema. A depender das conformações locais de corpo docente, professores formados em medicina de família e comunidade adicionam conteúdos próprios à especialidade já nos primeiros anos. Mesmo assim, sabemos de exemplos de cursos com boa presença de MFCs nos quais a abordagem clínica é feita pela visão da MFC, introduzindo precocemente o ensino de abordagem centrada na pessoa, por exemplo. 

 

3) O que é necessário para melhorar essa inserção na graduação e a integração com os Programas de Residência em MFC?

Primeiramente, a adequação dos cursos às DCN de 2014 para aumentar a exposição do graduando no internato à prática da MFC. Entendemos que a intensificação do ensino de medicina nos cenários de atenção primária gera uma necessidade de articulação profunda com o Sistema Único de Saúde, as secretarias municipais de saúde e as coordenações de atenção básica, para além da articulação com os PRMFC. Em que pese os desafios inerentes às diversas camadas de articulação já colocadas, a disputa de cenários entre diversas escolas em um sistema de saúde subfinanciado gera tensionamentos importantes, que por vezes atrapalham ou impedem o alcance dos objetivos de aprendizagem das unidades curriculares em questão.   

4) Quais são os desafios para  aumentar o número de médicas e médicos de famílias no Brasil envolvidos na docência na graduação e pós-graduação? 

O fortalecimento da residência médica, principalmente na modalidade do R3, e da pós graduação stritu sensu são caminhos para aumentar o número de médices de família envolvidos com a docência. Parcerias inter-institucionais como as experiências do PROFSAUDE vem se provando riquíssimas para a formação de médices que a universidades precisam. O desafio recai na manutenção de políticas públicas para a pós-graduação em um contexto político de valorização da iniciativa privada por parte de gestores públicos. Em uma área do conhecimento em crescimento, mas ainda modesta como a nossa, o papel do investimento público é primordial.    

5) Sobre preceptoria: quais as qualidades de um profissional que possa atuar conciliando à assistência com a educação médica?

Primeiramente, o profissional precisa de ter sua ação em educação médica valorizado, através de carga horária protegida, pagamento de adicional, e outras estratégias. Somente assim o profissional, mesmo o capacitado, tem condições de seguir aperfeiçoando-se e dedicando-se com qualidade à preceptoria. No dia-a-dia da preceptoria a principal qualidade do profissional é a de ser um modelo positivo, com uma relação de cuidado e respeito para com os alunos. Fazemos muito a analogia entre a medicina centrada na pessoa e a preceptoria centrada no estudante, inclusive boa parte do livro do Método Clínico é voltado para essa questão.  

6) Em relação a residência em MFC, apesar do crescimento na última década, há aparente estagnação nas políticas públicas voltadas para expansão dos programas. Como fortalecer os programas existentes, criar novas vagas e ao mesmo tempo interiorizar e abrir novas áreas de atuação?

Essa é a resposta que vale um milhão de reais! Como fazer o que precisa ser feito, para o bem não apenas da especialidade em si, mas sim para atender as necessidades de saúde da população brasileira, em um cenário tão adverso quanto o que vivemos? Um ponto importante é não perdermos o que conquistamos até aqui. A intensificação da troca entre os programas, com compartilhamento de momentos teóricos, por exemplo, é uma forma de que trabalhar a retenção de residentes. O próprio fortalecimento das associações estaduais da Sociedade, favorecendo a comunicação e a aproximação da Sociedade com quem está no interior, pode contribuir. Por outro lado, a Sociedade deve pautar a Associação Médica Brasileira (AMB) e consequentemente a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) na defesa do espaço da Medicina de Família e Comunidade.  

Mencionamos os aspectos que acreditamos ter maior governabilidade como Sociedade científica e como Grupo de Trabalho dela.   

7) Gostariam de sugerir artigos, livros e materiais sobre a temática? 
Gostaríamos de sugerir a leitura sobre Ensinagem, nos artigos da professora Léa das Graças Camargos Anastasiou, que indiretamente fala do patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Além desse, um artigo de 1973 do médico inglês, Julian Tudor Hart, no Lancet chamado “Relationship of primary care to undergraduate education”, que contém as três importantes missões que o ensino da atenção primária cumpre: 

1) corrigir a ignorância social dos futuros médicos, 

2) ensinar a lidar com incertezas, e 

3) ensinar uma espécie de raiva disciplinada, não contra pessoas, mas contra atitudes e situações que impedem a medicina de chegar às pessoas doentes. 

Sobre o GT:

Quando foi fundado e qual o propósito?

Foi fundado em 2011, no bojo do desenvolvimento da diretoria de graduação da Sociedade. Para o resgate histórico sugerimos a leitura do blog do GT ainda no ar:  https://gtensinagemfc.wordpress.com/  

Quais são as atividades promovidas?
Há o chat de mensagens que funciona como uma grande comunidade de práticas, com intensa troca de experiências e informações. Realizamos também reuniões temáticas, como a que fizemos recentemente sobre Internato em APS no momento da Pandemia. 

Em 2019 realizamos o seminário nacional do GT, com tema específico voltado para Residência em Medicina de Família e Comunidade. Foi um espaço importante, em que produzimos uma atualização às recomendações para qualidade dos PRMFC’s. 

Quais são os requisitos para participação? 
Ser sócio primeiramente. Além disso, ter interesse ou atuar com ensino de MFC.

Alguma produção em andamento?

O produto do Seminário do GT de Ensinagem de 2019 está no forno para publicação na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.