Carta aberta ao Governo federal, senadores e deputados federais, em exercício e eleitos, extensiva a sociedade civil

20 de novembro de 2018

Carta aberta da SBMFC ao Governo federal, senadores e deputados federais, em exercício e eleitos, extensiva a sociedade civil – Apresentação da proposta “Mais Médicos residentes em Medicina de Família e Comunidade”

Diante da notícia recente do fim do acordo de cooperação internacional entre Cuba e Brasil para provimento emergencial de médicos no Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB) e do risco de desassistência de uma parcela significativa da população, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) vem tornar pública sua avaliação e propostas de superação à situação.

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) tem um papel fundamental para o Sistema Único de Saúde (SUS). São inúmeras as evidências de seu impacto positivo para a saúde da população em diferentes áreas, da redução da mortalidade infantil em série histórica à diminuição de internações por condições sensíveis à Atenção Primária à Saúde (APS). Entretanto, desde sua origem na década de 1990, convive com o problema de provimento e fixação de profissionais de saúde, em especial o profissional médico. Esse problema se agrava quando se relaciona à distribuição dos profissionais as diferentes regiões pois em areas periféricas, mais carentes e remotas sempre foram as mais afetados pelo problema: por exemplo, enquanto nas capitais existem 5,07 médicos por mil habitantes, no interior a razão corresponde a 1,28 médicos por mil habitantes, inferior a relação mínima recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS)

Instituído em 2013, por meio da Lei Federal 12.871, o PMMB possui como um dos seus eixos o provimento emergencial de médicos, com um objetivo de suprir um déficit de aproximadamente 15.000 vagas, segundo estimado em 2013 pela campanha da Frente Nacional de Prefeitos, que correspondia a aproximadamente um terço das equipes de saúde da família no país.

Diversos países do mundo utilizam de cooperação internacional para reduzir déficits de médicos em áreas de difícil provimento, e alguns como Estados Unidos e Austrália, inserem outros profissionais da saúde, como enfermeiros, midwives, nurse practitioners e physicians assistants nos cuidados à saúde da população de áreas rurais e remotas. Contudo, o provimento de médicos por cooperação internacional costuma ser realizado em menor escala e atrelado a outras estratégias de formação de recursos humanos para o trabalho nessas áreas como: estratégias de pré-seleção de estudantes nas universidades, valorização do profissional rural, estratégias de diminuição do isolamento do profissional com facilitação de inserção acadêmica e de apoio à qualidade de vida do profissional e sua família.

É incontestável que o eixo de provimento do PMMB obteve um grande impacto na redução do déficit de médicos na ESF, de modo que em um ano do programa alcançou-se uma cobertura de mais de 90% do quantitativo de profissionais demandados inicialmente pelos municípios e reduziu-se na ordem de 75% no número de municípios com menos de 0,1 médico/1.000 habitantes. Pesquisas realizadas mostraram resultados significativos em indicadores de saúde da população assistida.

Logo no início do PMMB, a SBMFC manifestou-se por meio de nota na qual analisava a fragilidade da estratégia de provimento em larga escala e dos riscos inerentes à mesma no caso das outras iniciativas do programa não fossem implantadas. À época, destacamos como essencial investimentos continuados e crescentes no eixo de formação de profissionais para a qualificação e sustentabilidade da APS a médio e longo prazo.

O Sistema Integrado de Informações Mais Médicos (SIMM) indica que, das atuais 18.240 vagas do PMMB, 8.469 são ocupadas por profissionais cubanos. O Ministério da Saúde, em seu posicionamento publicado em 14 de novembro de 2018, aponta como possível solução ao esvaziamento do programa a convocação imediata de um edital para a substituição das vagas deixadas pelos médicos cubanos. Afirma ainda que outras medidas de ampliação da participação de médicos brasileiros no programa já vinham sendo estudadas e poderão ser adotadas conforme necessário.

A SBMFC reitera a importância da existência de outras estratégias para suprir as vagas deixadas pelos médicos cubanos, sendo os programas de residência médica em Medicina de Família e Comunidade (PRMMFC) uma oportunidade excelente de não apenas suprir o déficit gerado pela descontinuidade da participação cubana no PMMB, mas também de consolidar uma APS de qualidade no país com a formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade.

Segundo a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) temos em 2018, 3.149 vagas de R1 credenciadas em programas de residência médica de Medicina de Família e Comunidade (RMFC) no Brasil, majoritariamente vinculados a cenários de prática no SUS. Entretanto, há uma ociosidade dessas vagas que gira em torno de 70%, na média dos 2 anos de residência.

Assim, no cenário de 2019, a SBMFC propõe incorporar ao PMMB nesse momento crítico, iniciativas que aqui denominamos como “Mais Médicos residentes em Medicina de Família e Comunidade”.

O “Mais Medicos residentes em Medicina de Família e Comunidade” se basearia na ocupação total desse quantitativo de vagas por meio da colaboração entre o Ministério da Educação e Saúde, que arcariam com o financiamento de bolsas, para residentes e preceptores, além de suporte para estruturar os PRMMFCs de instituições já credenciados junto a CNRM e que se disponibilizariam para assumir o compromisso junto ao PMMB. Assim, com o governo federal ficaria responsável pelo pagamento das bolsas aos médicos residentes em valor equivalente ao que se paga aos médicos no PMMB e ajustar as bolsas de supervisão e tutoria como bolsas de preceptoria e coordenação, gerando a indutores para ocupação de vagas associadas ao provimento médico estratégico e de qualidade na APS.

Como exposto, considerando que o programa de RMFC tem duração de 2 anos, acreditamos que com as políticas indutoras de ocupação adequadas, há potencial de somar cerca de 3000 medicos residentes em 2019 e a partir de 2020, 6.000 profissionais que atuariam na ESF através da residência, além da presença de seus preceptores também médicos.

Considerando o panorama temerário do congelamento dos investimentos em saúde pelos próximos 20 anos, emergencialmente a possibilidade de converter parte dos postos desocupados para vagas de residência teria como vantagem nesse momento crítico aproveitar os recursos já destinados ao provimento e não gerar ônus adicional ao Erário Público, utilizando recursos orçamentários já previstos para o PMMB em 2019.

Estudos apontam que uma política adequada de recrutamento e retenção de recursos humanos deve englobar múltiplas estratégias, adotadas simultaneamente, ao invés de escolherem-se estratégias isoladas. Por sua vez, as políticas de recrutamento e retenção de força de trabalho em saúde não podem ser construídas isoladamente das políticas de aprimoramento do sistema de saúde e da gestão, relacionadas a uma maior orientação para a qualificação da ESF como coordenadora do cuidado.

O número total de vagas pode também ser aumentado considerando-se o incremento significativo de profissionais aptos à atividade de preceptoria em Medicina de Família que foram e estão sendo formados através do Programa Nacional de Formação de Preceptores também resultado de investimentos do Ministério da Saúde, que podem ser envolvidos neste processo com qualidade. A distribuição locorregional desses preceptores, à semelhança do PMMB, pode ser organizada mediante estímulos com o objetivo de formar novos especialistas em MFC que, na sequência, se fixem por tempo maior em localidades de difícil provimento considerando a vinculação a programas de residência e a atuação como preceptores e docentes das graduações em medicina abertas após o PMMB.

Estratégias que aumentam o provimento temporariamente mas não fixam o profissional nas áreas rurais e remotas, como o serviço temporário obrigatório ou voluntário, não deveriam ser a primeira opção, tampouco prioritárias, visto que têm potencial de prejudicar a qualidade, a longitudinalidade e a integralidade do cuidado, além de, indiretamente, desestimular as melhorias dos sistemas de saúde locais e a busca de um perfil profissional adequado. Estas podem, entretanto, ser soluções opcionais quando outras alternativas se mostraram infrutíferas mas encaradas de fato como transitórias.

Entendemos que a adoção imediata das iniciativas sugeridas na proposta “Mais Médicos residentes em Medicina de Família e Comunidade” poderiam suprir grande parte do quantitativo de vagas necessário no momento, evitando graves consequências da desassistência à população e ampliando a capacidade de solução emergencial a uma política consistente de formação de especialistas.

Finalmente, a SBMFC reitera seu interesse em colaborar com os órgãos públicos no desenvolvimento de outras estratégias de enfrentamento da situação – principalmente nas áreas indigenas, remotas e outras que ainda não estão aptas a receber imediatamente a residência – com o intuito de garantir assistência à população, por reconhecer a saúde como direito e entender a APS como o modelo que garante redução de iniquidades e melhores resultados de saúde.

20 de novembro de 2018,

Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – Gestão 2018-2020 Associação Paraense de Medicina de Família e Comunidade 

Assinam também:

Associação Brasiliense de Medicina de Família e Comunidade 

Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade 

Associação Capixaba de Medicina de Família e Comunidade 

Associação Gaucha de Medicina de Família e Comunidade 

Associação dos Médicos de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro 

Associação Goiana de Medicina de Família e Comunidade 

 

Referências:

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Augusto DK, David L, Oliveira DOPS, Trindade TG, Lermen Junior N, Poli Neto P. Quantos médicos de família e comunidade temos no Brasil? Rev Bras Med Fam Comunidade. 2018;13(40):1-4. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc13(40)1695

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SBMFC. Posicionamento da Diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade em relação ao programa “Mais Médicos”. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 2013. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/posicionamento

Scheffer M et al. Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, Cremesp; 2018. 286 p.

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