Reconhecer os determinantes sociais como influenciadores na saúde é fundamental para a potencialização da atuação do profissional na atenção primária, principalmente em territórios marcados pela violência. As médicas de família e comunidade Ana Carolina Xavier e Juliana Machado produziram a monografia “Formação médica em território violento” para conclusão do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro na comunidade do Jacarezinho.
O tema surgiu da necessidade de não permitir mais que a violência se mantivesse ocultada na rotina de atendimento dos pacientes. “Compreendemos que falar sobre violência contribui para o nosso aprendizado em lidar com as situações adversas do território e nos fortalece frente ao entendimento do processo saúde-doença provocado pela violência armada”, explica Ana Carolina.
As autoras da monografia ainda consideram a nossa formação médica muito centrada e distante da realidade vulnerável das pessoas que recebem os cuidados e assistência. Além de reconhecerem que a carência do sistema de ensino superior nas faculdades de medicina de todo o Brasil bloqueia o entendimento dos determinantes sociais ao manter o tema ocultado na grade curricular e porque o aprendizado é feito em um ambiente protegido.
“Ao mesmo tempo, se temos a oportunidade de estagiar em uma área com violência armada latente, é muito provável que sejamos contaminados pela indiferença de outros profissionais. Por exemplo, manter o atendimento no consultório em meio ao tiroteio na rua ou se cegar frente à miséria da comunidade. Durante a elaboração do nosso trabalho também observamos a carência de trabalhos científicos que abordassem a violência armada como determinante social potencializador direto dos processos de adoecimento do indivíduo. A ausência desses materiais ofusca a nossa abordagem clínica e comunitária da realidade vulnerável”, explica Juliana.
A atuação na comunidade do Jacarezinho foi mais que uma escolha, foi uma necessidade, apontam Ana Carolina e Juliana. Necessidade diária que elas reavaliaram os preconceitos e medos, necessidade latente de questionar desigualdade social a partir do questionamento da construção social e racial do sistema capitalista. “Pisar no Jacarezinho, território que pulsa vulnerabilidades, foi uma escolha para além da consciência material. Permanecer nele, foi incontestável”, abordam.
Sobre o sentimento de medo por atuarem em uma comunidade marcada por violência, Ana Carolina e Juliana explicam que sempre o sentiram. “Nosso maior medo sempre foi de que não pudéssemos mais atuar no território. O Jacarezinho nos conquistou e qualquer hipótese de não poder mais exercer nosso trabalho nesse território que ressignifica o estado de ser médica e os processos de saúde e de doença de uma população nos causavam medo. Sobre o medo de morrer ou de se ferir, bom, esse nos impactou de outra maneira. Percebemos que ele nos fazia agir enquanto em outras pessoas ele é paralisante. E agindo é sempre mais fácil de se proteger”.
No primeiro ano de residência, as médicas vivenciaram a possibilidade de fim do programa de residência no Jacarezinho devido a preocupação com a segurança. A unidade ficou quase uma semana sem funcionar e levantaram a possibilidade de não abrir mais por questão de segurança dos profissionais.
Cada dia de tiroteio era uma reviravolta no estado emocional. Ser medico de família e comunidade por si só já é um desafio emocional diário quando encaramos a miséria da sociedade, atuar nessa especialidade lidando com tiroteio ou iminência de confronto armado, potencializa esse desafio. Roda de conversa, grupos Balint, horários de cuidando do cuidador (grupo de relaxamento, grupo de música, aula de yoga, aula de dança, reiki, auriculoterapia e até aula de maquiagem) realizados e promovidos pelos profissionais da unidade contribuíram muito como apoio psicológico e união da equipe.
Muitas vezes, os atendimentos eram atravessamos pelo tiroteio no muro vizinho, pelo tremor no corpo com o barulho de fogos, pela fala e pensamento desconcentrado ao se ouvir um helicóptero. E para além do espaço físico do consultório, o atendimento em visita domiciliar onde presenciávamos mais friamente a violência, pelas armas desfiladas por todo o território, das marcas de bala nos muros, lajes, vidros e discursos dos pacientes.
Sobre os papéis dos agentes de saúde, as autoras os consideram fundamentais e indispensáveis. “A partir deles temos os primeiros relatos da violência e suas consequências. Eles são os nossos olhos, braços e pernas dentro do território, cada fala, discurso, sentimento e questionamentos deles são o reflexo da comunidade e uma extensão de nós enquanto equipe técnica”.
Como atendem as populações vulneráveis à violência, Ana Carolina e Juliana perceberam que os moradores de comunidade são mais suscetíveis a doenças psicológicas como síndrome do pânico e depressão. E todo o trabalho das médicas de família e comunidade evidencia essa correlação. “Estamos investindo em um trabalho na farmácia da nossa unidade para quantificarmos a relação entre liberação de benzodiazepínicos em dias após o tiroteio ou fechamento da unidade devido ao acesso vermelho”, comenta Juliana.
Ainda, durante a residência puderam constatar que os determinantes sociais causam impactos na saúde do paciente. “É preciso expor isso ao mundo em uma linguagem acessível. Precisamos evidenciar a partir das produções científicas a correlação direta dos determinantes sociais nos processos de adoecimento de uma população. Essa correlação envolve a vulnerabilidade provocada pelos determinantes sociais e ao próprio processo de iniquidade em saúde. Como bem vimos na construção do nosso trabalho, os locais que mais sofrem com os determinantes sociais são os que mais careciam de serviços de saúde de qualidade”, exemplifica Ana Carolina.
E as recém-formadas convidam a todos que se interessam pelo tema a conhecer o Jacarezinho. “O território e sua população são mais do que violência e merecem reconhecimento para além disso. Entendemos que temos a oportunidade de dar uma visibilidade positiva a um território estereotipado. Se somos um recurso comunitário, temos que retribuir a essa população tudo o que aprendemos diariamente”, concluem.
Residência no Rio de Janeiro e Medicina de Família
Escolheram pela residência em Medicina de Família e Comunidade no Rio pela conjuntura política da época, onde a atenção primária estava em constante expansão com valorização do seu serviço e profissionais. Inclusive, as duas são naturais do estado. Ana Carolina é de Campos, cursando a Faculdade de Medicina de Campos e Juliana, da capital, onde cursou a Universidade Estácio de Sá.
Sobre a escolha da especialidade, ambas reconhecem os fundamentos e princípios do SUS, com uma medicina para além da medicalização e processos de patogenização. “Valorizamos o cuidado longitudinal, a abordagem comunitária e, principalmente, a medicina centrada na pessoa com abordagem da experiência da doença. E os próximos passos são permanecer no Jacarezinho e manter a luta pelo SUS, pela atenção primária”.
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