O impacto da amostra de medicamentos na prática médica

12 de abril de 2017

 Por Rodrigo Lima, diretor de comunicação da SBMFC 

Há algumas semanas a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) divulgou nas redes sociais uma brincadeira, pegando carona no "meme" do momento (“raiz x nutella”), que comparava dois perfis de médico com o objetivo de fazer uma crítica a algumas práticas consideradas inadequadas. A crítica que gerou mais controvérsia entre os médicos foi "usar amostra de medicamento fornecida por representante de laboratório". O hábito de receber esses representantes e aceitar as amostras que eles distribuem é prática frequente no meio médico, e pelo que pudemos perceber muitos médicos fornecem amostras para os seus pacientes usando como justificativa argumentos do tipo "muitas vezes o medicamento não está disponível na farmácia do SUS e as amostras permitem que o paciente faça o tratamento ao qual não teriam acesso por questões financeiras". Ou seja, muitos médicos não vêem problema na prática. Deveriam?

 

Uma pesquisa feita com médicos residentes em 2001 mostrou que 61% dos entrevistados acredita que ações promocionais e contato com representantes da indústria não influencia a sua prática, mas apenas 16% pensam o mesmo em relação aos outros médicos, o que sugere que boa parte destes profissionais entende o poder dessa influência mas se vê blindada contra ela. Este excesso de confiança na própria capacidade de discernimento é enganoso, e a indústria farmacêutica sabe disso: nos EUA, em 2005 investia US$ 30 bilhões em ações de marketing, sendo 84% do valor em amostras de medicamentos e ações de promoção direta aos médicos (visitas a consultórios, eventos, etc.). O valor investido em marketing supera o que se investe em pesquisas: em 2001 o montante investido em marketing e administração pelas maiores empresas farmacêuticas nos EUA correspondia a 30% do faturamento, enquanto apenas 12% deste era investido em pesquisas. Para quem ainda acha que é imune a esse tipo de influência, uma outra pesquisa realizada em 2000 analisou prescrições médicas em relação à disponibilidade de amostras de medicamentos fornecidas por representantes de laboratórios e descobriu que em determinados cenários mais de 90% das prescrições não foram as das drogas de escolha dos médicos, mas sim as drogas disponíveis em amostras de laboratórios, e o principal argumento utilizado foi "reduzir os custos para o paciente". O problema é que as amostras normalmente não são necessariamente dos medicamentos mais recomendados para cada doença, mas sim dos que há interesse na sua promoção: em um intervalo de 4 anos, uma classe de medicamentos anti-hipertensivos (bloqueadores do canal de cálcio) teve sua prescrição aumentada em 13%, mesmo sendo considerada menos efetiva e mais cara do que a categoria de primeira escolha (os diuréticos tiazídicos), que tiveram sua prescrição diminuída em 50% no mesmo período, graças às ações promocionais que incluíam a disponibilização de amostras de medicamentos para os médicos.


A distribuição de amostras se baseia em aspectos peculiares ao contexto brasileiro: formação profissional insuficiente quanto à prescrição e uso de medicamentos; precariedade da assistência farmacêutica e da assistência à saúde em geral, com pouco tempo disponível para discutir as opções terapêuticas; e as condições sócio-econômicas da população que não apenas limitam o acesso a medicamentos, mas interfere no entendimento sobre cuidados necessários ao usá-los. Os representantes, ao conseguir vínculo com os serviços de saúde fornecendo pequenos presentes e brindes, criam uma imagem positiva em torno dos produtos que divulgam não só entre os médicos, mas com todos os profissionais do serviço. Quando chegam ao objetivo final, que é serem recebidos no consultório, utilizam de diversas técnicas de persuasão que, ao longo do tempo, geram cumplicidade entre médico e representante, criando no profissional a sensação de dívida, o que acaba promovendo prescrições. As amostras de medicamentos entram como a materialização do discurso sobre os mesmos, com enorme potencial de gerar prescrições que produzem sentimentos positivos para o profissional, que "resolveu" o problema do paciente ao entregar as amostras. E sentimentos positivos, como a psicologia já explica há muito tempo, aprofundam vínculos e favorecem a repetição das situações que os geraram…

A legislação e regulamentação da atividade médica no que diz respeito à relação destes com a indústria ainda possui lacunas importantes. O Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM) diz apenas que é vedado ao médico exercer a profissão com interação ou dependência de indústria farmacêutica", sem qualquer detalhamento do que significa esta  interação com a indústria, porém atualmente está em processo de revisão e esperamos que contemple o tema em sua próxima versão. O CFM, responsável por fiscalizar o exercício da profissão médica no Brasil, tem ainda um posicionamento publicado em conjunto com a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Associação das Indústrias Farmacêuticas de Pesquisa (Interfarma) que atualmente é referência para a relação entre os médicos e a indústria. Embora apresente alguns avanços como recomendações sobre o caráter das visitas dos representantes de laboratório e a oferta de brindes e presentes, também é omisso em relação à utilização de amostras de medicamentos.

É preocupante a pouca discussão sobre o assunto no meio médico, e mais ainda a percepção de que poucos médicos percebem o poder da influência dessas amostras. Representantes de laboratório não podem ser considerados fontes de atualização científica e terapêutica, pois fornecem apenas os dados que interessam às suas empresas, não os que interessam a nós e principalmente, aos nossos pacientes. Médicos devem se manter atualizados a partir de publicações científicas que tenham o maior grau de isenção possível, sob risco de prejudicar seus pacientes, e da pior maneira possível: com a crença de que estão ajudando ao distribuir amostras de medicamentos.

 

Referências:


1 – Steinman MA, Shlipak MG, McPhee SJ. Of principles and pens: attitudes and practices of medicine housestaff toward pharmaceutical industry promotions. Am J Med. 2001 May;110(7):551-7.

2 – Kornfield R, Donohue J, Berndt ER, Alexander GC. Promotion of Prescription Drugs to Consumers and Providers, 2001–2010. PLoS One. 2013; 8(3): e55504.

3 –  Public Citizen Report: Pharmaceuticals Rank as Most Profitable Industry, Again. 2002.

4 – Chew LD et al. A Physician Survey of the Effect of Drug Sample Availability on Physicians’ Behavior. J Gen Intern Med 2000;15:478–483.

5 – Goodman B. Do drug company promotions influence physician behavior? West J Med. 2001 Apr; 174(4): 232–233.

6 – Petramale CA, Rumel D. A promoção de medicamentos e seu impacto nas boas práticas de prescrição. Disponível em stoa.usp.br/clariceap/files/-1/9160/Propaganda+de+medicamentos.doc
7- Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica, 2010
8 – http://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/protocolo%20cfm%20interfarma%20final.pdf