2 de agosto de 2016
Durante o mês de julho de 2016, muitos profissionais de saúde viram e comentaram postagens de Facebook que reproduziam falas comuns de pacientes, em um tom pretensamente educativo, mas também jocoso e presunçoso. Uma dessas postagens tripudiava do termo “peleumonia”, dito por algumas pessoas para se referir a infecções pulmonares ou quadros semelhantes. Julia Rocha, médica de família e comunidade no Rio de Janeiro, negra, mineira, cantora e gestante, se referiu àquela postagem em seu próprio Facebook no dia 29 de julho.
Reproduzimos a postagem abaixo, na íntegra:
EXISTE PELEUMONIA.
Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria, quebranto, mal olhado, impíngi, cobreiro, vento virado, ispinhela caída. Eu tô aqui pra mode atestá. Quem sabe o que tem é quem sente. E eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Mode a gente se entendê. Por que pra mim foi dada a chance de conhecê as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê. Pode dizê. Eu quero ouvir.
O texto de Júlia ilustra competências fundamentais à Medicina de Família e Comunidade, descritas em obras clássicas como as de Barbara Starfield 1 e McWhinney e Freeman 2 , dentre as quais a integralidade do cuidado, a competência cultural e a orientação comunitária. Entender as pessoas como seres biopsicossociais e tentar oferecer cuidados que contemplem particularidades culturais e socioeconômicas são tarefas fundamentais para médicas e médicos de família e comunidade. Mais ainda, “uma das atribuições principais do médico é, então, traduzir o discurso, os sinais os sintomas do paciente para chegar ao diagnóstico da doença, ou seja, decodificar illness [experiência da doença] em disease [doença, nos termos médicos]” 3 .
1 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília:
UNESCO/Ministério da Saúde; 2002.
2 McWhinney IR, Freeman T. Manual de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.
3 Oliveira FA. Antropologia nos serviços de saúde: integralidade, cultura e comunicação. Interface – Comunic, Saúde, Educ. 2002;6(10):63-74.
Em 31 de julho, uma cópia dessa postagem foi compartilhada em um grupo de Facebook, seguida de comentários preconceituosos, racistas, cegos ao que estava em questão na fala da médica e contaminados pelo ódio que tem fermentado no Brasil contemporâneo. A médica foi ofendida e sua capacidade profissional foi posta em dúvida não só por discordância quanto à sua fala, mas também por sua pele e seus cabelos. Xingaram-na, a cor e o aspecto dos seus cabelos foi criticada, perguntou-se se ela sabia usar um estetoscópio. Nem sua especialidade foi poupada: um dos comentários perguntava se médico de família era “especialista em tirar piolho de mendigo”. Pior ainda: o grupo era formado por médicas e médicos, profissionais de quem se esperaria mais respeito, comedimento e solidariedade.
Diante disso, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e suas filiadas nos estados do Amazonas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Mato Grosso, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e no Distrito Federal, através de suas respectivas diretorias vêm a público repudiar o ódio e o preconceito sofridos pela profissional. Solidarizamo-nos com sua fala e seu sofrimento, do qual também padecem milhões de brasileiras e brasileiros cotidianamente, sem a proteção relativa de diplomas ou sociedades de especialidade. Repudiamos qualquer forma de discriminação por raça/etnia, gênero, renda, orientação sexual, procedência ou profissão. Sabemos que esse discurso raso e insultante, que expressa um ponto de vista estranho à prática médica necessária à sociedade, não encontra respaldo entre as outras especialidades médicas, parceiras da Medicina de Família e Comunidade no cuidado das pessoas.
Nunca é demais lembrar que a Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade médica reconhecida pela Associação Médica Brasileira, dedicada a cuidar das pessoas independentemente da idade ou sexo e dos órgãos ou sistemas envolvidos em suas queixas. Especialistas em Atenção Primária à Saúde, seus profissionais agregam cuidados preventivos e curativos a indivíduos, famílias e populações. Mais do que defender Júlia Rocha ou prestar esclarecimentos sobre nossa especialidade, queremos um mundo melhor para Júlias, Marias e Anas que sofrem preconceitos e perseguições semelhantes, nem sempre trazidas a nossos consultórios.
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Associação Amazonense de Medicina de Família e Comunidade
Associação Baiana de Medicina de Família e Comunidade
Associação Cearense de Medicina de Família e Comunidade
Associação Mineira de Medicina de Família e Comunidade
Associação Mato Grossense de Medicina de Família e Comunidade
Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade
Associação Potiguar de Medicina de Família e Comunidade
Associação Gaúcha de Medicina de Família e Comunidade
Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro
Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade
Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade
Associação Brasiliense de Medicina de Família e Comunidade
1 de agosto de 2016