Contrária à campanha Novembro Azul, SBMFC incentiva o debate sobre limites médicos e sugere a atenção à saúde do homem de forma regular e integral
Iniciativa de entidades médicas e filantrópicas, a campanha Novembro Azul se popularizou no País, ganhando apoio de empresas, organizações não governamentais, artistas e grande parte da imprensa. O incentivo ao rastreamento do câncer de próstata, no entanto, além de não ser consideravelmente eficaz, envolve riscos não discutidos por seus propositores e entusiastas.
Contrária à campanha, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) se posicionou por meio de um comunicado público em que sugere que os homens devem ser vistos de forma integral, e a eles devem ser dirigidos cuidados preventivos adequados, de forma regular. “A SBMFC considera que os homens, de fato, precisam dar e receber mais atenção à sua saúde, mas as evidências científicas mais recentes deixam claro que isso não deve ser feito por meio da dosagem do PSA ou realização de toque retal em pessoas que não apresentam qualquer sintoma.”
A contraindicação tem base na recomendação de respeitadas instituições nacionais e estrangeiras, entre elas a United States Preventive Services Task Force (USPSTF), o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Desde 2013, o instituto brasileiro recomenda que os homens que demandassem espontaneamente a realização de exames de rastreamento fossem informados sobre os riscos e benefícios associados a essa prática. Segundo o Inca, “existem evidências científicas de boa qualidade de que o rastreamento do câncer de próstata produz mais dano do que benefício”. O diretor de Comunicação da SBMFC, Rodrigo Bandeira Lima, explica: “Assim como nós, o Instituto entende que os benefícios não compensam em relação aos potenciais malefícios, como falso-positivo, efeitos colaterais das biópsias e cirurgias desnecessárias”.
Isso não significa, porém, que os exames não sejam pedidos por médicos em investigações ou para homens que já estejam completamente esclarecidos sobre os possíveis riscos envolvidos. “Pode haver exceções, mas não podemos fazer um estímulo populacional, midiático e ostensivo para esse tipo de prática”, esclarece o autor principal do posicionamento da SBMFC, Antonio Augusto Modesto.
Segundo ele, é preciso incentivar a atenção às diversas necessidades de saúde do homem. A mortalidade por causas externas, o tabagismo e os outros tipos de cânceres são alguns desses problemas. Segundo Modesto, os serviços de saúde precisam pensar se estão se organizando de forma a superar as dificuldades enfrentadas pelos homens. “Considerando a quantidade de problemas de saúde masculina, me parece que uma campanha com foco no incentivo ao rastreamento do câncer de próstata não seja a melhor forma de abordagem. Melhor seria se os serviços de saúde se preparassem para receber os homens, inclusive nas dificuldades de cuidado, de maneira mais regular”, diz.
Evidências científicas
Uma das razões para contraindicar o rastreamento para câncer de próstata é o fato de os testes para dosagem do PSA e a realização de toque retal não conseguirem mostrar a diferença entre cânceres agressivos e problemas sem gravidade. A impotência sexual – que atinge cerca de 50% dos homens que tiram a próstata, segundo o European Study of Screening for Prostate Cancer – e a incontinência urinária são as mais graves sequelas dos tratamentos do câncer de próstata não agressivo. “Os riscos das sequelas por causa de uma intervenção que não parece modificar a saúde dos homens tornam o rastreamento desaconselhável”, diz o diretor de Comunicação da SBMFC. Além disso, estudos realizados por mais de 10 anos, acompanhando milhares de homens, mostram que a realização do PSA – com ou sem toque retal – resultou em uma taxa insignificante de diminuição na mortalidade geral dos homens e muda muito pouco a mortalidade específica por câncer de próstata.
Na opinião de Lima, existem temas mais impactantes para a saúde do homem do que discutir uma estratégia que tem sido criticada por tanta gente. O diretor participou, em 13 de novembro, de um debate proposto pelo jornal Folha de S. Paulo, na TV Folha, em que esclareceu que a proposta da SBMFC não é proibir, mas dividir os riscos e benefícios do rastreamento com o paciente.
Independentemente de contraindicar ou não o rastreamento ao câncer de próstata, um consenso entre os profissionais de saúde é que a melhor prevenção deste e de qualquer tipo de câncer é ter uma alimentação saudável, praticar exercícios físicos e não fumar. “Infelizmente, a medicina tem limites e o câncer de próstata mostra um deles. Ainda não temos uma forma claramente eficaz de reduzir o risco ou de fazer uma intervenção precoce que mude sua mortalidade”, diz Modesto.
Incentivo ao debate
Das 171 matérias publicadas na mídia (impressa, televisiva ou digital) em novembro com a participação da SBMFC, 80% destacou o posicionamento diante da campanha Novembro Azul. Durante todo o mês, a assessoria de imprensa conquistou espaços importantes, como no debate na TV Folha e até no Jornal Nacional, da TV Globo. Este retratou as informações sugeridas pela SBMFC, desde fontes até estudos científicos para o embasamento da reportagem, que teve duração de aproximadamente cinco minutos.
Na opinião da diretoria da SBMFC e do autor principal do posicionamento divulgado na imprensa, a repercussão foi muito positiva. Modesto cita o fato de a Sociedade ter anunciado publicamente o que médicos e médicas de família já faziam há bastante tempo dentro dos consultórios, conversando com os homens e falando sobre os riscos associados ao rastreamento. “O posicionamento da Sociedade deu publicidade a esse debate, ascendeu a discussão sobre os limites da medicina e exigiu que aqueles que incentivam o rastreamento se manifestassem sobre suas justificativas científicas. Acredito, enfim, que conseguimos desnaturalizar algumas práticas.”
De acordo com o médico, o debate também promoveu a divulgação da MFC, o fortalecimento coletivo entre os especialistas e influenciou outros médicos da atenção primária. “Alguns médicos se pautam pelo senso comum e preconizam esse tipo de rastreamento influenciados pela campanha. Nossa posição é contra-hegemônica e essa repercussão dentro da categoria médica também é muito positiva”, diz.
Após o posicionamento da SBMFC, algumas Secretarias Municipais de Saúde se manifestaram contra o rastreamento do câncer de próstata. “Por meio desse debate, conseguimos fortalecer o contraponto e futuramente poderemos promover muitas transformações na forma como as pessoas veem a campanha e como os serviços de saúde se relacionam com ela”, finaliza Modesto.