Texto número 7 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
O Atlas da violência em sua versão de 2020, nos apresenta dados que mostram que as taxas de feminicídio no país obtiveram redução no ano de 2018 em comparação com o ano de 2017. No entanto, essa redução se apresenta de maneira díspar quando desagregando os dados por quesito raça/cor. Enquanto a redução de mortes por feminicídio foi de 12,3% em mulheres não negras, entre mulheres negras tal redução foi de apenas 7,2%. Essa discrepância chama ainda mais atenção quando analisamos a série histórica de 2008 a 2018 onde a taxa de homicídios de mulheres não negra caiu 11,7%, porém entre mulheres negras, o número teve aumento de 12,4%. No ano de 2018, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. (1)
Os dados sobre feminicídio chamam atenção, no entanto, é importante reconhecer que as mulheres negras sofrem diversas outras formas de violência, inclusive dentro das instituições. São a maioria entre as vítimas de mortalidade materna (entre os óbitos maternos ocorridos no Brasil, de 1996 a 2018, 65% são de mulheres de raça/cor preta ou parda), e entre as mulheres que têm menor acesso a acompanhamento pré natal, realização de programas de rastreamento de neoplasias e oferta de abortamento seguro. O que demonstra claramente o racismo institucional presente na saúde. (2,3,4)
Para considerar a experiência de mulheres negras brasileiras, é essencial usar a lente da interseccionalidade de opressões, que nos permite acessar as matrizes de opressão de gênero e raça operando de maneira integrada na construção de corpo/subjetividade/performatividade de mulheres negras no país.
As violações ao corpo de mulheres negras brasileiras remonta a época da escravização de pessoas negras sequestradas do continente africano que durou mais de 3 séculos no país. O racismo instituído pelo colonialismo e escravização construiu a ideia hegemônica de superioridade branca como norma estabelecida e, ao passo que tal discurso construíu a branquitude como norma, condicionou as pessoas racializadas como inferiores à outridade (5), a uma construção subjetiva de inferioridade, bestialidade, agressividade, e hiperssexualização além da negação do direito de falar por si. Nesse contexto, o discurso hegemônico produziu a ideia de que a mulher negra não era lida apenas como objeto, mas como animal selvagem a ser domesticado/civilizado. Tal construção narrativa, foi e é usada como subterfúgio para justificar estupros, assassinatos, castigos brutais e outras violações ao corpo de mulheres negras.
Findado o processo escravocrata, mas não a marginalização e negação à humanidade de pessoas negras no país, a imagem social da mulher negra foi atualizada, conforme perspectivas e interesses hegemônicos. A imagem de empregada doméstica que cuida da casa dos patrões ao longo de toda a vida e que pode ser considerada quase da família, começa a se construir ainda durante o período escravocrata, onde mulheres negras, desde a infância, eram forçadas ao trabalho doméstico, no qual se mantinham por toda a vida.
Um segundo estereótipo negativo, da mulher negra hipersexualizada, fogosa, que sabe dançar e que é interessante para práticas sexuais, mas não para relacionamentos românticos oficiais começa a se desenhar durante a escravização, justifica processos de recorrentes violências sexuais no passado e se mantém atualizado hoje, por meio de discursos como “a preta pra transar, a mulata pra namorar e a branca pra casar”.
Essas duas imagens de controle apresentadas acima, atuam diretamente na forma como mulheres negras no Brasil constroem sua subjetividade e identidade social e como socializam com o mundo e com parcerias íntimas. As imagens são mecanismos de controle social ao passo que tentam naturalizar a mulher negra em condição de subalternidade, de subserviência, de corpo que desse ser moldado para os interesses de outros e que seja capaz de aguentar as mais distintas formas de agressão e violação. Tais processos de subjetivação tentam condicionar mulheres negras a naturalizar a ideia de que relações abusivas são saudáveis, o sofrimento em decorrência das violações são superáveis e responsabilidade delas de lidar, já que são naturalmente mais fortes e resistentes às dores. Esse discurso narrativo produzido e atualizado por nossa sociedade cotidianamente legitima a ideia de que o corpo da mulher negra não a pertence.
Além das imagens de controle produzidas a partir da intersecção das matrizes de opressão de gênero e raça, é preciso atentar para a interlocução com outras matrizes de opressão que oprimem mulheres negras no nosso país. Mulheres negras são a maioria (40%) entre as pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, de acordo com a síntese de indicadores sociais de 2020, (7) são o grupo populacional que recebe os menores salarios para realizar as mesmas funções, em comparação com homens brancos, homens negros e mulheres brancas (8) e são a maioria entre mulheres que chefiam famílias monoparentais.
No Brasil, o padrão estético vigente corresponde a características fenotípicas eurocêntricas. Essa imposição de beleza,violenta com todas as mulheres, é especialmente cruel com mulheres negras, que por vezes se reconhecem como o oposto deste padrão. O reconhecido mercado de estética e cirurgia plástica brasileiros cresce de forma acelerada e chama especial atenção o crescente mercado voltado para o embranquecimento dos corpos de mulheres negras, que expande o escopo de ofertas para além das plásticas de rinoplastia, através de procedimentos que envolvem a técnica de laser para despigmentar mamilos, lábios, axilas e vagina, entre outros.
É importante ainda atentar para a heterogeneidade de experiências de opressão de mulheres negras dos distintos territórios brasileiros, para a invisibilidade imposta a mulheres negras lésbicas e para mulheres negras transexuais e travestis, que lideram o ranking de pessoas trans assassinada neste país (82%), de acordo com dados da ANTRA (9) .
O cuidado em saúde de mulheres negras envolve o acesso a narrativa e experiências dessas mulheres. Envolve a habilidade de reconhecer o processo de tornar-se negra como desafiador e doloroso; de perceber a dificuldade em pedir ajuda ou expor sofrimento, que muitas dessas mulheres foram obrigadas a aprender como fazer; de validar esses sofrimentos; de lidar com auto-ódio e sensação de culpabilização desenvolvida por essas mulheres e; de incentivar autonomia e autocuidado.
Para mulheres negras, o combate à violência, passa pela luta pelo direito a ter a humanidade reconhecida, a ter direito a construir corpos/subjetividades rompendo com imagens de controle e opressão. É pensar, como propõe a perpectiva interseccional e os feminismos negros, que a luta feminista precisa ser uma luta contra todas as formas de hierarquia social e elitismo, senão deixa de ser uma luta por justiça social e passa a servir à interesses de um sistema de subordinação capitalista, patriarcal, racista e cisheteronormativo.
Por Rita Helena Borret e Monique França
Referências: