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Violência contra meninas e adolescentes

27 de novembro de 2020

Texto número 3 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs. 

Em agosto desse ano, a mídia cobriu a saga de uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio, em busca de ter seu direito ao aborto legal garantido. Infelizmente, pode-se estimar que nos 3 meses que se passaram desde então, 6.300 crianças e adolescentes foram estupradas no país , na sua maioria meninas (1) . São aproximadamente 70 por dia.

Em 2019 (1), 70,5% de todos estupros registrados foram de “vulnerável”, ou seja, menores de 14 anos ou pessoas que não podiam oferecer resistência ao ato. Do total de estupros, 57,9% tinham no máximo 13 anos. Entre crianças e adolescentes, 85% foram do sexo feminino e a maior proporção ocorreu entre 10 e 14 anos de idade. Em 84,1% do total de estupros, o autor era conhecido da vítima. Em síntese, o Brasil é um país onde as principais vítimas de violência sexual são meninas e adolescentes, na sua maioria abusadas por familiares ou pessoas de confiança da família. Isso a partir de dados notificados à polícia, que provavelmente são subnotificados.

Outra dimensão da violência sexual, é gestação decorrente do estupro. Estima-se que, por ano, mais de 20.000 crianças nasçam de meninas entre 10 e 14 anos (2). Ou seja, mais de 20.000 meninas por ano seriam elegíveis para realizar o aborto legal e não tiveram acesso a esse direito, acumulando portanto uma série de violências: a do estupro, a do não acesso ao aborto legal e provavelmente a da maternidade compulsória. O aborto clandestino e seus riscos à saúde e à vida (3) dessas meninas é outra consequência dessa violência estrutural. Estima-se que, somente neste ano de 2020, 786 abortos já foram realizados ou sofridos por meninas menores de 14 anos, sendo 40 destes por meninas menores de 10 anos de idade (4).

A raiz da violência contra meninas e adolescentes tem relação com o status inferior que mulheres e crianças ocupam na sociedade e normas culturais relacionadas a gênero e masculinidade, que se expressam na tolerância social, tanto da vitimização das meninas, quanto da perpetração por parte de meninos e homens. É por isso que mudanças profundas das normas sociais que naturalizam o poder masculino sobre corpos de meninas e mulheres são necessárias e urgentes para o combate à violência contra meninas e adolescentes (5). 

Para além das macropolíticas necessárias para esse fim, a APS e a MFC tem um papel fundamental nesse enfrentamento e no cuidado dessa população, já que as repercussões da violência no processo saúde-doença são amplamente documentadas e demandam um cuidado integral (6) (7) (8). Muitas vezes a APS é o primeiro ou o principal contato da vítima com o Estado – que deveria assegurar os direitos das crianças e adolescentes (9) – e por isso a identificação de crianças e adolescentes em situação de risco é importante (10). Como a abordagem de pessoas em situação de violência demanda um cuidado intersetorial, (Conselho Tutelar e de equipe multiprofissional) e longitudinal, a APS e a MFC podem cumprir um papel relevante de coordenação do cuidado, articulando as diferentes estratégias necessárias (6). E para que as equipes na APS se reorganizem para garantir acesso e cuidado integral, é importante o envolvimento da MFC na educação permanente, trabalhando tanto habilidades e técnicas (de acolhimento, de aconselhamento, de manejo) recomendadas (5) (6) (11), como desconstruindo a naturalização da violência contra meninas e adolescentes, tão presentes na nossa sociedade.

Por Bruna Ballarotti http://lattes.cnpq.br/8905324292925547

  1. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020 [acesso em 01 nov 2020]. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf 
  2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [homepage na internet]. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Estatísticas do Registro Civil [acesso em 08 nov 2020]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2679 
  3. Domingues RMSM, Fonseca SC, Leal MC, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto inseguro no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad. Saúde Pública  [Internet]. 2020  [cited  2020  Nov  08] ;  36( Suppl 1 ): e00190418. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020001302002&lng=en.  Epub Feb 10, 2020.  http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00190418. 
  4. AZMINA
  5. Organização Mundial da Saúde. INSPIRE: sete estratégias para pôr fim à violência contra crianças. Núcleo de Estudos da Violência 2018 [acesso em 01 nov 2020]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/207717/9789241565356-por.pdf?ua=1
  6. Mendonça CS, Machado DF, Almeida MAS, Castanheira ERL. Violência na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa da literatura. Ciênc. saúde coletiva  [Internet]. 2020  Jun [citado  2020  Nov  08] ;  25( 6 ): 2247-2257. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232020000602247&lng=pt.  Epub 03-Jun-2020.  https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018.
  7. Oram S, Khalifeh H, Howard LM. Violence against women and mental health. The Lancet Psychiatry, 4(2), 159–170 [Internet]. 2017 [acesso 08 nov 2020]. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanpsy/article/PIIS2215-0366(16)30261-9/fulltext. doi:10.1016/s2215-0366(16)30261-9.
  8. McDonald KC. Child abuse: approach and management. Am Fam Physician. 75(2):221-228 [Internet]. 2007 [acesso 08 nov 2020]. Disponível em: https://www.aafp.org/afp/2007/0115/p221.html
  9. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. [acesso em 08 nov 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
  10. Gibson J. Domestic violence during COVID-19: the GP role. British Journal of General Practice, 70(696), 340–340 [Internet]. 2020 [acesso 08 nov 2020]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32586806/ . doi:10.3399/bjgp20x710477
  11. Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad. Saúde Pública  [Internet]. 2020  [citado  2020  Nov  08] ;  36( 4 ): e00074420. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000400505&lng=pt.  Epub 30-Abr-2020.  https://doi.org/10.1590/0102-311×00074420.