Texto número 3 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs.
Em agosto desse ano, a mídia cobriu a saga de uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio, em busca de ter seu direito ao aborto legal garantido. Infelizmente, pode-se estimar que nos 3 meses que se passaram desde então, 6.300 crianças e adolescentes foram estupradas no país , na sua maioria meninas (1) . São aproximadamente 70 por dia.
Em 2019 (1), 70,5% de todos estupros registrados foram de “vulnerável”, ou seja, menores de 14 anos ou pessoas que não podiam oferecer resistência ao ato. Do total de estupros, 57,9% tinham no máximo 13 anos. Entre crianças e adolescentes, 85% foram do sexo feminino e a maior proporção ocorreu entre 10 e 14 anos de idade. Em 84,1% do total de estupros, o autor era conhecido da vítima. Em síntese, o Brasil é um país onde as principais vítimas de violência sexual são meninas e adolescentes, na sua maioria abusadas por familiares ou pessoas de confiança da família. Isso a partir de dados notificados à polícia, que provavelmente são subnotificados.
Outra dimensão da violência sexual, é gestação decorrente do estupro. Estima-se que, por ano, mais de 20.000 crianças nasçam de meninas entre 10 e 14 anos (2). Ou seja, mais de 20.000 meninas por ano seriam elegíveis para realizar o aborto legal e não tiveram acesso a esse direito, acumulando portanto uma série de violências: a do estupro, a do não acesso ao aborto legal e provavelmente a da maternidade compulsória. O aborto clandestino e seus riscos à saúde e à vida (3) dessas meninas é outra consequência dessa violência estrutural. Estima-se que, somente neste ano de 2020, 786 abortos já foram realizados ou sofridos por meninas menores de 14 anos, sendo 40 destes por meninas menores de 10 anos de idade (4).
A raiz da violência contra meninas e adolescentes tem relação com o status inferior que mulheres e crianças ocupam na sociedade e normas culturais relacionadas a gênero e masculinidade, que se expressam na tolerância social, tanto da vitimização das meninas, quanto da perpetração por parte de meninos e homens. É por isso que mudanças profundas das normas sociais que naturalizam o poder masculino sobre corpos de meninas e mulheres são necessárias e urgentes para o combate à violência contra meninas e adolescentes (5).
Para além das macropolíticas necessárias para esse fim, a APS e a MFC tem um papel fundamental nesse enfrentamento e no cuidado dessa população, já que as repercussões da violência no processo saúde-doença são amplamente documentadas e demandam um cuidado integral (6) (7) (8). Muitas vezes a APS é o primeiro ou o principal contato da vítima com o Estado – que deveria assegurar os direitos das crianças e adolescentes (9) – e por isso a identificação de crianças e adolescentes em situação de risco é importante (10). Como a abordagem de pessoas em situação de violência demanda um cuidado intersetorial, (Conselho Tutelar e de equipe multiprofissional) e longitudinal, a APS e a MFC podem cumprir um papel relevante de coordenação do cuidado, articulando as diferentes estratégias necessárias (6). E para que as equipes na APS se reorganizem para garantir acesso e cuidado integral, é importante o envolvimento da MFC na educação permanente, trabalhando tanto habilidades e técnicas (de acolhimento, de aconselhamento, de manejo) recomendadas (5) (6) (11), como desconstruindo a naturalização da violência contra meninas e adolescentes, tão presentes na nossa sociedade.
Por Bruna Ballarotti http://lattes.cnpq.br/8905324292925547