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SBMFC entrevista Paulo Fontão: vamos falar sobre saúde e espiritualidade

29 de setembro de 2017

SBMFC: Médicos precisam estar mais sensíveis à questão da espiritualidade nos pacientes?

Paulo Fontão: Sim, é uma das Dimensões do Ser Humano, se quisermos ver as pessoas por nós cuidadas com Integralidade, não há como deixar de fora. A partir de 1992 a OMS passa a considerar a dimensão espiritual como parte do Conceito de Saúde. Em todas as suas dimensões; pela OMS: saúde é o estado onde uma pessoa funciona bem no corpo, na mente, no social e no espiritual, permitindo-lhe expressar todo o seu potencial no ambiente onde vive. A dimensão espiritual na medicina hoje é objeto de estudo de centenas de pesquisadores. Se colocarmos na busca do Google, as duas palavras “Saúde e Espiritualidade” aparecem mais de 3,6 milhões de referências. A própria Medicina de Família, em suas definições cita que o Médico de Família deve dar acesso aberto e ilimitado às pessoas, lidando com todos os problemas de saúde, independentemente da idade, sexo ou qualquer outra característica da pessoa em questão; que é responsável pela prestação de cuidados continuados de acordo com as necessidades da pessoa; que deve promover a Saúde e o Bem Estar através de intervenções apropriadas e efetivas; que lida com os problemas de saúde em todas as dimensões: física, psicológica, social, cultural e existencial (espiritual) – o comportamento e os padrões de doença são variados e as intervenções que não levam em conta estes aspectos não vão à raiz do problema. Não há como fazer tudo isso sem ter a competência cultural – um dos princípios derivados da APS – da religiosidade, da espiritualidade, mesmo sem a prática ou a fé por parte do médico, mas desse conhecimento não podemos nos esquivar, não podemos abrir mão.

 

SBMFC: Quando o médico faz uma abordagem diferente, dando a oportunidade da pessoa falar sobre sua intimidade, e aí inclui as crenças, essa pessoa se sente mais acolhida?

Paulo Fontão: Como refere o professor Eymar Vasconcelos, da Universidade Federal da Paraíba em seu livro A Espiritualidade no Trabalho em Saúde,  muitas experiências  têm demonstrado que o desenvolvimento da sensibilidade, do manejo das emoções e da intuição de forma integrada com a razão que a Espiritualidade pode trazer, é fundamental para a Humanização e maior eficiência da assistência. Mas sempre temos que nos aproximar com profundo respeito e delicadeza de cada pessoa. Tenho a experiência, com os alunos, aplicando modelos de Anamnese Espiritual em pacientes internados em nosso Hospital Escola que estes se recusaram abertamente a tocar  nestas questões, interrompendo os alunos. Então, na prática, temos que buscar entender a conveniência, a oportunidade e o quanto essa abordagem pode de fato contribuir na construção do Bem Estar, da plena Saúde, DAQUELA PESSOA. Não somos todos iguais, a nossa abordagem como Médicos de Família, como profissionais de Saúde também não pode ser. Cada pessoa é única, únicos também seus desejos, suas características individuais, suas necessidades.

 

SBMFC: Como o médico deve falar de espiritualidade e fé com o paciente?

Paulo Fontão: Existem modelos estruturados de Anamnese Espiritual, usados em alguns serviços nos EUA e na Europa. Particularmente estamos buscando um jeito mais nosso, porque não nos parece adequados à nossa cultura, ao nosso jeito de ser e de se viver e se relacionar com essa dimensão. Deve-se sobretudo colher o momento adequado em que a relação construída é de confiança e abertura para isso para não comprometer o processo terapêutico e criar muros ao invés de novas pontes com essa pessoa.

 

SBMFC: Há evidências científicas de que ser religioso é bom para a saúde?

Paulo Fontão: Nos estudos sobre Espiritualidade e Saúde se fala em Coping (mecanismos, estratégias) Positivo e Coping Negativo, então existem estas duas possibilidades, dependendo muito da experiência religiosa ou espiritual do próprio paciente. Se a experiência com Deus para determinada pessoa é libertadora, transformadora, traz alegria só em nominar, sim pode ser e é comprovado em vários estudos, para a saúde, sua mais rápida recuperação, evolução. Caso contrário pode ser danosa para o paciente, se essa experiência foi um encontro com um deus punidor, castrador.

 

O livro Espiritualidade e Saúde – Inserção da Espiritualidade na Formação Profissional em Saúde está terminado e terá lançamento oficial no CBMFC. Elaborado na nossa Faculdade de Medicina Santa Marcelina, com participações ilustres, como do Professor Eymar Vasconcelos, do Professor Eno Filho, do Teólogo e Professor da PUC Paraná Alex Villas Boas, muita colaboração de nossos alunos. Pensamos que é bela contribuição para essas questões e será um Dom a quem tiver acesso.

 

SBMFC: O senhor pode nos contar de alguma experiência vivida com algum paciente onde a espiritualidade foi significativa no tratamento para esse paciente?

Paulo Fontão: Uma vez estava diante de uma senhora que acompanhava há um ano, de aproximadamente 60 anos, portadora de Diabetes e Hipertensão Arterial, sempre bem controladas; segundo o que também reforçava a Agente Comunitária de Saúde vivia em uma casa sempre muito limpa, organizada, tomava corretamente a medicação e fazia sim corretamente a dieta, do que observava. Em um determinado dia, ainda antes de chama-la para consulta ouvi que ela tossia no corredor. Assim que chamei fiz novamente uma pergunta que já havia lhe feito se fumava, porque parecia a tosse de uma fumante. Negou que fumasse. Os exames que havia feito e que deveria lhe passar na consulta não estavam bons. O controle da pressão arterial mostrava um certo descontrole nos últimos dois meses….Busquei entender porquê, mas não encontrava respostas…Insisti com a pergunta se fumava, porque a ausculta respiratória era mesmo muito sugestiva…até que ela se abriu e me respondeu que era “Mãe de Santo” aos finais de semana e para o Santo traziam charutos, comidas salgadas, doces, bebidas alcoólicas…diante disso entedia claramente que sem abordar essa questão religiosa não conseguiria ajudá-la; propus que ela, como “cavalo” (é assim que se chama que incorpora o Santo),  precisava explicar de alguma forma ao Santo que não lhe estava fazendo bem o que comia e bebia nas cerimônias e mesmo ainda o charuto…Não entrei em detalhes como isso aconteceu, mas ela voltou ao bom controle anterior.

 

SBMFC: O senhor faz parte do grupo “Coalização Inter-Fé”?

Paulo Fontão: Não faço parte do grupo organizativo, mas participo dos eventos e discussões que eles têm realizado em São Paulo. O que é o Coalizão Inter-Fé? No início do ano de 2015, alguns profissionais de diferentes origens e que já se conheciam por outras atividades começaram a idealizar a formação de um grupo para explorar possibilidades de apoio espiritual a pacientes internados. Assim se juntaram o Dr. Mario F. P. Peres (médico doutorado em neurologia, ligado a renomadas instituições de pesquisa científica), a Profa. Lia Diskin (co-fundadora da Associação Palas Athena, entre inúmeras outras atividades humanísticas) e o Cônego José Bizon (diretor da Casa da Reconciliação, iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para o (s) diálogo(s) ecumênico e inter-religioso).

 

Cada um deles contatou capelães de institutos que já se empenhavam em iniciativas de apoio religioso hospitalar e religiosos de diferentes credos e os convidou para uma primeira reunião, que aconteceu em 09 de maio de 2015. Um grupo começou a ser formado por profissionais da saúde e líderes religiosos, além de estudiosos de ciências humanas, a partir de sucessivas reuniões. Lançaram um Manifesto, que entre outras coisas refere: “Conhecendo estas necessidades, os participantes propuseram a criação da Coalizão Inter-fé em Saúde e Espiritualidade. Desejamos construir e apontar formas para aprimorar a compreensão da interface saúde-espiritualidade, atuando no tripé assistência, ensino e pesquisa. Fomentaremos a troca de experiências e de competências para apontarmos caminhos capazes de superar os obstáculos atuais. Sugeriremos formas de preencher as lacunas relacionadas ao apoio espiritual a pacientes, familiares e colaboradores.

 

O grupo se reunirá periodicamente para propor ações a seus integrantes e a setores da sociedade que se propuserem a aproveitá-las, como instituições de saúde, congregações religiosas e agências governamentais.

 

A Coalizão Inter-fé em Saúde e Espiritualidade reconhece todas as religiões históricas, as juridicamente constituídas e tradições de fé que possuem valores éticos e universais. Sempre que há respeito e abertura, o intercâmbio destes preciosos valores é possível. “O Coalizão Inter-Fé em Saúde e Espiritualidade também é parceiro na nossa publicação que devemos lançar até o final de abril desse ano, se Deus quiser! A fé é uma força poderosa que ajuda o paciente a superar fases difíceis da doença?

 

Como refere o Professor Villas Boas “A doença não é somente um fenômeno biológico, mas existencial, e nessa condição participa da experiência cultural e histórica de uma determinada região e época, assimilando os significados culturais (sentido passivo) e elabora alguns próprios (sentido ativo) como consciência, mínima que seja, da nova condição vivida, de modo que a doença é um evento que exige o discernimento da ação em prol da cura. a sabedoria presente nas teologias da saúde pode se constituir como formas cooperativas dos tratamentos médicos e terapêuticos, pela fé na vida que carregam. Há nessas sabedorias míticas e narrativas, uma cura [ressignificação] no modo de pensar a vida a partir da doença .“Pensar a questão religiosa é uma tarefa também da sociedade, de modo que ela acontece no tecido social, e atinge, entre outros fatores, a saúde. Uma tarefa em aberto da cura da cultura contemporânea é reduzir a exploração religiosa da saúde, compondo uma fé e esperança mais lúcidas juntamente com a adesão responsável do tratamento, evitando sua evasão por anúncios de pseudo-curas, e ampliar a atuação na elaboração de políticas públicas de saúde, aproveitando a contribuição de cada teologia confessional da saúde, pois a oferta de saúde para todos e os que mais necessitam é um desejo tanto de Hipócrates (em quantas casas eu entrar, entrarei para o benefício dos que sofrem […] mulheres, homens livres ou escravos cf. Orkhós, 6) quanto de Cristo (Eu estive doente e me visitou cf. Mt 25,36)”.

 

Construir saúde implica, muitas vezes, em articulações em espaços socialmente organizados, como Conselhos de Saúde de unidade, de região, município, estado, nacional, Espaços associativos médicos, Conselhos, Sindicatos, Empresas Médicas. São espaços de necessário diálogo político, no melhor sentido do termo. São necessários alguns passos obrigatórios, para que seja construtivo:

Buscar o bem do outro;

Crítica a fatos e atitudes;

Compreender o outro;

Boas fontes para bons argumentos (cuidado com declarações dadas à imprensa + contexto histórico e argumentação dos especialistas);

O perigo de generalizar;

Discussão de fatos;

Seriedade;

Saber ouvir (questão de postura);

Construir a fraternidade.

 

A Espiritualidade, nesse caso vivida não só como Competência Cultural, quanto prática, pode nos dar pistas e nos ajudar a realizá-lo. O momento nosso, no Brasil, pede um certo “radicalismo do diálogo”, com uma certa urgência, eu diria.

 

Paulo Celso Nogueira Fontão é Membro do GT de Saúde e Espiritualidade da SBMFC ; Médico Assessor do Grupo da Gestão Médica da APS Santa Marcelina; Coordenador do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade do Hospital Santa Marcelina; Professor da Faculdade de Medicina Santa Marcelina – FASM – São Paulo, nas Disciplinas de Medicina de Família e Comunidade e Espiritualidade e Tanatologia; membro da Câmara Técnica de Medicina de Família e Comunidade do CFM; Membro do Conselho Fiscal da APM – Associação Paulista de Medicina; Membro da Associação Internacional Health, Dialogue, Culture (HDC); Membro do GT de Saúde e Espiritualidade da SBMFC.