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SBMFC entrevista João Roger: vamos falar como é a RM de Medicina de Família e Comunidade?

6 de setembro de 2018

João Roger é diretor residente da SBMFC, residente do programa de Residência de MFC da Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina*. 

SBMFC: Como é o dia a dia de um residente em Medicina de Família e Comunidade?

João: A maior parte da carga horária está, ou deveria estar, em atividades na Atenção Primária à Saúde, na qual o médico de família e comunidade vai essencialmente atuar. Além disso, passamos em estágios nas áreas de interesse do médico de família e comunidade como de urgência e emergência, práticas integrativas, cuidados paliativos, infectologia, pediatria, ginecologia e obstetrícia, etc. Também somos treinados em habilidades de comunicação, gestão da clínica, abordagem familiar e outros aspectos inerentes com a especialidade, isso tanto através de aulas e oficinas como no dia-a-dia do atendimento.

 

SBMFC: Como é a rotina?

João: A carga horária pré-determinada para os programas de residência de Medicina de Família e Comunidade pela Comissão Nacional de Residência Médica é de 60 horas semanais. A distribuição dessa carga horária entre as atividades varia de um programa para outro, mas no geral essa é a carga horária mínima cobrada.  Por conta disso, a rotina da residência costuma ser dinâmica, uma vez que não ficamos apenas no atendimento na ponta, mas também cansativa, principalmente porque quando estamos integrados ao serviço da rede de atenção primária, também estamos submetidos à pressão assistencial como um médico contratado da estratégia de saúde da família, isso tudo associado com as outras responsabilidades e atividades que já citei relativas à residência.

 

SBMFC: Quais são as atribuições de um residente em MFC?

João: Existe uma dualidade no papel do residente que é o de ser um profissional inserido no serviço e, portanto, fazer parte do quadro de trabalhadores, ao mesmo tempo em que é um profissional em treinamento para o desenvolvimento de habilidades específicas da especialidade MFC, o que nos exige atribuições que vão além da assistência na ponta. Temos avaliações periódicas, aulas, estágios, pesquisas, oficinas de habilidades de comunicação, alguns programas também tem grupos ballint (que são grupos de dinâmica para qualificação da relação médico paciente), trabalhos de conclusão de curso (TCC). Então existem diversas outras demandas que são inerentes ao processo de aprendizagem que se somam à rotina assistencial do residente, o que algumas vezes pode ter impacto negativo tanto no desempenho quanto na própria saúde mental.

 

SBMFC: Quais as diferenças entre R1 e R2?

João: As diferenças entre o R1 e R2 vão variar de programa para programa quando se fala em distribuição das atividades, o que se espera é que um R2 esteja mais afinado com algumas habilidades esperadas de um médico de família e comunidade com residência do que um R1. Isso pode ser mensurado por processos avaliativos.

 

SBMFC: Sobre a preceptoria, quais são os atributos desejados pelos residentes para os profissionais que irão orientá-los durante os dois anos?

João: Os principais são em primeiro lugar alguém que tenha interesse pelo processo e formação na área de medicina de família e comunidade, de preferência com formação em preceptoria. Entendemos também que esses dois aspectos estão diretamente ligados com o estímulo e a valorização desses profissionais dentro da rede. Por mais que seja possível notar que mesmo em condições adversas existem pessoas que mantém esses dois atributos (interesse e formação) para exercer preceptoria, acreditamos que a qualidade do programa está diretamente ligada com uma preceptoria preparada, interessada e com os recursos necessários disponíveis dentro da rede.


SBMFC: O que um RM espera de um preceptor?

João: Espera-se que ele possa ser uma espécie de ponte que nos aproxima das habilidades esperadas de um médico de família e comunidade, alguém que esteja disponível e capacitado à discutir não só os casos da prática e gestão clínica mas também o processo como um todo. Esperamos também que ele esteja disposto a dialogar, nos ouvir de forma qualificada e mantenha uma relação horizontal onde o papel do preceptor não é ser um chefe mas sim um orientador.

 

SBMFC: E sobre os cenários de prática, o que se deve esperar?

João: Bom, somos defensores do SUS, achamos que o fortalecimento através do aumento exponencial do financiamento público, da expansão da APS e da dissociação entre público e privado e da gestão qualificada é que vamos conseguir oferecer de fato saúde como direito universal. Não temos a ilusão de achar que estamos nessa direção no cenário atual. E sabemos também que o SUS é o cenário de prática da residência e por consequência a residência não está isenta de lidar com as mesmas dificuldades pela qual passa o sistema de saúde. As dificuldades são, basicamente, as mesmas que enfrentam todos os profissionais do SUS. Uma demanda assistencial cada vez maior, mais complexa que se choca com um sistema cada vez mais fragilizado e sucateado pelos diversos governos, nas 3 esferas. Então é de se esperar que nós enfrentemos essa dificuldade na residência, e isso requer cada vez mais pesquisa e aprofundamentos sobre a qualificação da residência para que haja alguma proteção do processo como um todo, lembrando que a residência é um processo educativo, antes de mais nada, e máxima de “aprender sofrendo” por si só é insuficiente para dar conta dessa discussão.

 

SBMFC: Quais as características que um aluno deve levar em consideração ao escolher um programa de residência?

João: Em primeiro lugar, ele deve considerar se o seu perfil e os seus desejos dentro da medicina são compatíveis com a APS, o que às vezes é difícil pois muitas escolas não oferecem inserção na atenção primária. Na hora de avaliar os programas, cabe a avaliar qual a proposta político-pedagógica do programa, se tem uma preceptoria qualificada, se os campos de estágio estão minimamente preparados para receber o residente e se a bolsa oferece condições viáveis da pessoa se manter no município com alimentação, transporte, moradia, etc. Importante também avaliar o perfil da rede onde se fará residência e as práticas estimuladas. Diversas redes oferecem uma carteira de serviços ampla com diversas oportunidades de intervenção com práticas integrativas, oportunidades de pesquisa, etc. A região, urbana ou rural, também tem impacto no perfil de residência que se vai fazer.





SBMFC: O que um residente espera do mercado de trabalho após a conclusão?

João: Como eu disse, somos defensores do SUS, então esperamos que haja espaço para exercer a medicina de família e comunidade na APS do sistema único de saúde e que possamos contribuir com a expansão e com o fortalecimento da atenção primária, pois é onde acreditamos que está o caminho para melhorar o perfil de saúde da população brasileira. Claro, seria ingênuo da nossa parte negar a existência de um mercado cada vez mais crescente na iniciativa privada. E não consideramos quem opta por esse mercado como menos relevantes dentro da medicina de família e comunidade. Mas não ficamos alheios ao fato de que hoje o setor privado da saúde está em disputa de recursos públicos diretos e indiretos, sabemos que isso tem relação com o fato da política manter laços estreitos com o mercado e acreditamos que esse processo é sim uma política de saúde consciente, que tende a fazer da iniciativa privada um mercado mais atrativo do que o SUS.

 

SBMFC: Os residentes de MFC pretendem complementar a formação com mais alguma especialidade?

João: Acredito que a questão é se há a necessidade/possibilidade de complementar a formação com mais alguma especialidade. Existem alguns programas que oferecem uma residência de aprofundamento em algumas áreas como, por exemplo, o R3 de Gestão em Florianópolis e no Rio de Janeiro. Não é obrigatória, mas há a possibilidade para quem tem interesse por áreas mais específicas dentro da MFC.

 

SBMFC: Qual a importância das políticas específicas de valorização da residência de MFC para que alunos sintam-se atraídos pela especialidade?

João: Fortalecer e estimular a formação do Médico de Família e Comunidade é por consequência fortalecer os profissionais e as equipes da ponta na APS e assim fortalecer a própria APS. Entendemos que a atenção primária à saúde deve ser o eixo pelo qual se organiza o cuidado e se estrutura o sistema de saúde, como é em diversos países no mundo, e que é a proposta do SUS pensado pela reforma sanitária. Mas vale reforçar que não é possível fortalecer a residência e atrair egressos e médicos já formados para a especialidade sem o fortalecimento do SUS, as duas coisas são indissociáveis. Além disso, fortalecer a residência também passa por fortalecer o residente em todas as suas habilidades, inclusive a de lidar com a pressão assistencial e o esgotamento. Residências que ignoram os limites e a saúde dos seus residentes tendem a ser menos atrativas do que outras.





SBMFC: Quais os compromissos que serão assumidos por vocês nesta gestão?

João: Nossa proposta é clara: defender o SUS e a APS gratuita e de qualidade e discutir o processo de residência em todos os seus aspectos, desde a proposta política de qual médico de família e comunidade queremos formar até os caminhos percorridos e os obstáculos para isso.