As respostas foram elaboradas pelos membros do Grupo de Trabalho de Dor da SBMFC, com edição final de Marcos Paulo Correia Veloso, coordenador e Alfredo Oliveira Neto, vice-coordenador do GT.
SBMFC: Como se caracterizou a dor na história da medicina? Na percepção mais atual como a abordagem da dor deve ser ensinada aos profissionais de saúde?
GT: Da Antiguidade à Idade Moderna, as representações referentes à dor ocupavam o campo da relação com divindades ou fenômenos naturais. René Descartes foi o primeiro a abandonar a teoria egípcia que associava o coração como principal órgão relacionado à dor e assumir o cérebro como o mais importante. No século XIX, a descoberta da morfina e dos gases anestésicos foram marcos importantes nos campos da Dor e da cirurgia, embora experiencias de abuso e dependência de morfina tenham levado a seu abandono paulatino no início do século XX. Após a 1a Guerra Mundial, cirurgias e bloqueios regionais passaram a ser usados em dor crônica, e pela primeira vez se defendeu que dor crônica poderia ser uma doença per si. Após a 2a Guerra Mundial, em resposta à frequência com que a dor se cronificava após cirurgias, e à relação percebida com abuso prévio de álcool e transtornos depressivos, estabeleceram-se clínicas de dor interdisciplinares com médicos de diversas especialidades, psicólogos, e outros terapeutas; e, em 1973, a (também interdisciplinar) Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) [1].
Desde 1979 a dor tem sido definida pela IASP como uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada a, ou descrita em termos de, uma lesão tecidual real ou possível [2]. Esta definição foi revista este ano: as notas que acompanham a definição foram ajustadas, e a expressão “descrita em termos de” foi substituída por “lembrando aquela causada”, já que nem sempre o paciente pode se manifestar. O conceito, no entanto, manteve-se o mesmo.
Usar a experiência subjetiva como o foco principal do tratamento pode parecer, à primeira vista, inadequado; mas não poderia ser diferente, uma vez que a finalidade do tratamento é a qualidade de vida, e portanto a experiência. Além disto, o exame de imagem sem a experiência do paciente não é tão objetivo quanto aparenta. Entre uma lesão e o córtex cerebral (onde de fato percebemos a dor como dor), há um sistema nervoso. Parafraseando Drummond, no meio do caminho há um sistema nervoso, há um sistema nervoso no meio do caminho. Este sistema nervoso tende a esconder “embaixo do tapete” as mensagens de lesões degenerativas que evoluem pouco a pouco, e aumentar mensagens de dor mais intensas ou difíceis de controlar. Conflitos psicossociais são transformados em sensibilização física através dele. A dor não é um mero alarme, proporcional a lesões.
O conceito de dor como a experiência também orienta o tratamento. Focar na funcionalidade e qualidade de vida traz mais ganho à intensidade da dor, do que focar na intensidade da dor isoladamente. Remédios e procedimentos ambulatoriais devem ser apenas pontes para modalidades mais ativas.
Sabemos que existem vários tipos de dor – quais são as classificações mais comuns?
As classificações mais comuns são por: região anatômica; mecanismo biológico geral (nociceptiva, neuropática, ou nociplástica, conforme a fonte da mensagem de dor seja uma lesão real, um problema no nervo que levaria a mensagem, ou o aumento da mensagem no meio do caminho); musculoesquelética, visceral, e cefaléia/dor orofacial (vide classificação de dores crônicas primárias da IASP / CID 11, que separa estes três grupos das dores neuropáticas e relacionadas a trauma ou câncer); relação ou não a câncer e/ou a uma expectativa de fim de vida (pois qualidade de vida neste contexto tem aspectos diferentes dos demais); duração (aguda ou crônica conforme menor ou maior de 3 meses); e cronificação em si.
Duração é apenas um fator de risco para cronificação; embora um critério simples, útil a alarmes clínicos e pesquisas. Na maioria das vezes em que se fala de “dor crônica”, ainda que se use o critério de duração, o que se pretende inferir é a cronificação. Neste segundo sentido, dor crônica é considerada uma condição (ou doença) crônica não transmissível.
Cronificação refere-se ao acúmulo de tantas alterações que o retorno completo à situação original se torna improvável. A definição clássica de dor crônica – aquela “persistente para além do tempo de restauração normal do tecido” [3] – aludia a este conceito, a persistência da lesão inicial sendo vista como improvável, e outros mecanismos (possivelmente sequelas) devendo estar atuantes. Dizer que uma dor é crônica, neste sentido, não significa uma condenação para o resto da vida; mas que entende-se que já tenha se tornado tão arraigada (tantas alterações físicas, psicológicas, e relacionais tenham ocorrido, como componente ou consequência da dor) que o tratamento tem de ampliar seu foco – de uma busca por fatores causais isolados, com apenas a cura como objetivo, para uma ênfase no treinamento do paciente a um controle adequado, de modo a retomar qualidade de vida, funções e sonhos.
Quais tipos de dores mais frequentes nos brasileiros?
No Brasil, em torno de 30% dos adultos tem dor musculoesquelética e/ou sintomas musculoesqueléticos em geral, na ausência de trauma. As regiões mais comumente dolorosas são “coluna” (77%), joelho (50%), ombro (36%), tornozelo (28%) e mãos (23%), tomando por base um estudo COPCORD em dezesseis capitais brasileiras [4]. Dor de cabeça é também importante causa de dor crônica [5 ,6, 7] e aguda.
As queixas de dores crônicas têm aumentado nos últimos anos; como as médicas e médicos de família e comunidade devem atuar no manejo de pessoas que apresentam dores crônicas?
O MFC deve se manter atualizado nas condições clínicas mais comuns, sem negligenciar uma boa formação e prática nos princípios e ferramentas da MFC. Por um lado, muita coisa nova tem sido descrita acerca do conceito, abordagem e prognóstico de condições dolorosas comuns, como osteoartrite, osteoporose, poliartrites, e fibromialgia, que dizem respeito à MFC pela significativa prevalência. Por outro, critérios e protocolos desenvolvidos em serviços especializados nem sempre alcançam validação na APS [8,9,10], e a MFC tem responsabilidade quanto à revisão crítica da literatura, discussão de opções, e pesquisas, contribuindo à interface a partir de sua expertise.
O MFC está em posição privilegiada para acompanhamento das condições mais comuns, incluindo casos precoces, inespecíficos, crônicos, e contextualmente complexos; identificação, abordagem inicial, referência precoce, e acompanhamento paralelo, coordenando o cuidado de quadros graves e/ou urgentes; avaliação de vulnerabilidade e contextos; empoderamento do paciente e sua família por meio de abordagens psicossociais e auxílio à construção e fortalecimento de rede de apoio local; monitoramento e investigação precoce de casos com má resposta.
SBMFC: Há um excesso de medicalização da dor? Como evitar na atenção primária à saúde a repetição de prescrição ou de condutas de outros níveis de atenção?
GT: Há, sim. Por exemplo, um recente estudo em Israel com quase mil pacientes atendidos sequencialmente por MFCs com treinamento em Dor, durante um ano, teve resposta significativa (mínimo de 70% de redução de intensidade à escala numérica) em cerca de 3 a cada 4 pacientes, sendo resolução total em cerca de metade dos pacientes, quando avaliados no primeiro e no sexto mês; tendo sido usadas medicações em apenas 38% dos casos, em uma média de cerca de três encontros por ano, usando majoritariamente técnicas voltadas ao componente miofascial da dor [11].
A APS trabalha com uma população diferente, com desafios e oportunidades de intervenções diferentes, de outros níveis de atenção. Uma boa história e exame físico, complementadas por procedimentos diagnóstico-terapêuticos ambulatoriais de pronta resposta, como no caso da dor miofascial e na sensibilização medular segmentar. Infiltrações articulares e agulhamento de pontos-gatilho são competências reconhecida pelo Currículo baseado em competências da SBMFC. O GT em Dor oferece anualmente em suas Jornadas discussões teóricas e treinamento prático inicial (incluindo estágios supervisionados a alguns congressistas interessados) em várias destas técnicas.
SBMFC: No ensino acadêmico, a abordagem da dor é feita de forma adequada?
GT: Não. Em todo o mundo, e mesmo em programas de residência de MFC, dor tem apenas recentemente (últimas duas décadas) recebido a atenção devida como condição de saúde em si, mais do que um sintoma. Dor na APS, em especial, é um tema ainda em estudo e construção. No Brasil, ao nosso conhecimento, o primeiro treinamento oficial e estruturado de médicos de família em abordagens de dor voltadas à APS começou em 2006 em Niterói/RJ. Em 2011, 2012 e 2015 tiveram início as primeiras capacitações estruturadas longitudinais a PRMFCs em torno do tema; respectivamente abordando: acupuntura médica, em Santa Catarina, dor na APS no Rio de Janeiro, e dor miofascial, em São Paulo. Em 2014, teve início no Rio de Janeiro um matriciamento em dor por profissional NASF a todas as categorias profissionais da APS; também estendido a residentes do PRMFC-UERJ em unidades não cobertas, na forma de estágios rotativos.
SBMFC: Existe alguma especialização (pós-graduação/mestrado/doutorado) em dor que médicas e médicos de família e comunidade podem se aprofundar no tema?
GT: Existe um número crescente de cursos de pós graduação em Dor. No entanto, infelizmente, a ênfase principal destes cursos ainda são os casos refratários e de pior prognóstico, em tratamento ambulatorial ou intervencionista em nível terciário ou quaternário. Relativamente pouca ênfase é dada em habilidades de consulta para empoderamento do paciente, monitoramento de casos, grupos operativos, prevenção da evolução de dores agudas para crônicas, procedimentos ambulatoriais diagnóstico-terapêuticos que possam ser realizados na APS para apoiar o raciocínio e facilitar o entendimento do paciente, elaborando-se um plano comum; ou a abordagem de componentes comuns da dor crônica, como dor miofascial; ou condições dolorosas comuns, como osteoartrite, artrite reumatoide, artrite crônica pós-Chikungunya, poliartrites indiferenciadas, síndrome de manguito rotador. Até o presente momento, para se ter uma ideia, a MFC ainda não faz parte das especialidades elegíveis para a prova de área de atuação em dor pela AMB, ao contrário, por exemplo, de Clínica Médica.
SBMFC: Sobre o grupo, quando foi fundado e qual o propósito?
GT: Em 2011. Estimular e aprofundar a formação e interação entre profissionais interessados no campo da “Dor na Atenção Primária em Saúde”, para impacto prático na abordagem de pessoas sofrendo por dor.
Tem, por princípio norteador, buscar estes objetivos de modo isento e imparcial, sem favorecimento de grupos, visões pessoais, ou procedimentos específicos; em um esforço contínuo de integração de saberes em uma síntese sistematizada consensual, adaptável a diferentes contextos; e em apoio à construção de uma medicina crítica e (cada vez mais) baseada em evidências.
O tema engloba conceitos, epidemiologia, prevenção (primária, secundária, terciária e quaternária), promoção em saúde, diagnóstico (incluindo semiologia armada, exames
complementares, e diagnóstico diferencial), tratamentos (incluindo recuperação, reabilitação e paliação em saúde), processo de trabalho (individual e coletivo), ensino e pesquisa.
SBMFC: Quais são as atividades promovidas?
GT: Como espaço de formação, o GTDor tem provido:
1) eventos regulares teórico-práticos;
2) fóruns remotos de discussão permanente;
3) bibliotecas virtuais;
4) apoio à publicação de documentos norteadores e de revisão;
5) apoio à formação de multiplicadores;
6) eventos pontuais;
7) estímulo à pesquisa em ação;
8) fórum de discussão livre de temas;
9) trabalhos conjuntos com demais Grupos de Trabalho da SBMFC
10)catalogação de grupos de educação, pesquisa, ou especial esforço de assistência, para facilitação de contato entre grupos com caracteristicas semelhantes, e interação destes grupos com o GT (em construção).
SBMFC: Quais são os requisitos para participação?
GT: Enviar um email para gtdor@sbmfc.org.br, com um resumo de sua experiência prévia com o tema da “Dor em APS”; como acha que o GT lhe melhor poderia ser útil; e de como melhor pretende ser útil ao GT. Caso queira participar do Grupo Whatsapp, deve fornecer também o número de celular.
SBMFC: Alguma produção em andamento?
GT: Revisão coletiva do documento Dor Mecânica em APS (resumindo discussões do GT no tema ao longo dos anos, com respectiva literatura); revisão coletiva do Projeto para Dor Mecânica (protocolo de pesquisa); apoio à SBMFC na discussão, em andamento junto à
AMB, da inclusão da MFC na lista das elegíveis à prova de Área de Atuação em Dor; revisão e discussão de subtemas em apoio a projetos de que vários membros do GT participem, conforme solicitem ao grupo, a exemplo da seção em Dor da próxima edição do “Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências” e do próximo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde.
Referências:
[1] IASP – International Association for the Study of Pain. Kopf A, Patel NB, Ed. Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos. 2010. http://ebooks.iasp-pain.org/4qp0t9
[2] IASP – International Association for the Study of Pain. IASP Task Force on Taxonomy. Classification of Chronic Pain. 2nd Edition, updated. 2017. https://www.iasp-pain.org/terminology?navItemNumber=576
[3] IASP – International Association for the Study of Pain. IASP Task Force on Taxonomy. Classification of Chronic Pain. 2nd Edition, updated. 2011. [documento elertronico]. https://s3.amazonaws.com/rdcms-iasp/files/production/public/Content/ContentFolders/Public ations2/ClassificationofChronicPain/Introduction.pdf
[4] Dos Reis-Neto ET, Ferraz MB, Kowalski SC, Pinheiro Gda R, Sato EI. Prevalence of musculoskeletal symptoms in the five urban regions of Brazil-the Brazilian COPCORD study (BRAZCO). Clin Rheumatol. 2016;35(5):1217-1223. doi:10.1007/s10067-015-2963-5
[5] Sá KN, Baptista AF, Matos MA, Lessa I. Chronic pain and gender in Salvador population, Brazil. Pain 139 (2008) 498–506
[6] Vieira EBM, Garcia JBS, Silva AAM et al. Dor crônica, fatores associados e influência na vida diária: existe diferença entre os sexos? Cad. Saúde Pública, 2012, 28(8):1459-1467
[7] Cabral DMC, Bracher ESB, Depintor JDP, Eluf-Neto J. Chronic Pain Prevalence and Associated Factors in a Segment of the Population of Sao Paulo City. The Journal of Pain 2014; 15 (11) 1081-1
[8] Janssens HJ, Janssen M, van de Lisdonk EH, Fransen J, van Riel PL, van Weel C. Limited validity of the American College of Rheumatology criteria for classifying patients with gout in primary care. Ann Rheum Dis 2010;69(6):1255–1256
[9] Corson K, Doak MN, Denneson L, Crutchfield M, Soleck G, Dickinson KC, Gerrity MS, Dobscha SK. Primary Care Clinician Adherence to Guidelines for the Management of Chronic Musculoskeletal Pain: Results from the Study of the Effectiveness of a Collaborative Approach to Pain. Pain Medicine 2011; 12: 1490–1501
[10] Burgers LE, Siljehult F, Ten Brinck RM, van Steenbergen HW, Landewé RBM, Rantapää-Dahlqvist S, van der Helm-van Mil AHM. Validation of the EULAR definition of arthralgia suspicious for progression to rheumatoid arthritis. Rheumatology (Oxford). 2017 Dec 1;56(12):2123-2128
[11] Fogelman Y, Carmeli E, Minerbi A, Harash B, Vulfsons S. Specialized Pain Clinics in Primary Care: Common Diagnoses, Referral Patterns and Clinical Outcomes – Novel Pain Management Model. Adv Exp Med Biol. 2018;1047:89-98